E também não esquecemos a primeira desilusão sentimental porque o coração demora a estancar o sangramento, fica pingando. A gente não esquece o primeiro emprego, o primeiro beijo, a primeira bicicleta, o “primeiro tudo”!
Mas você se lembra do seu primeiro cliente? Ãhn?
Bem, vou contar a história da minha primeira cliente na advocacia.
Eu era louco para ser advogado. Quando fui transferido do Rio de Janeiro para Belém saí da área financeira e fui me agasalhar no departamento jurídico do Banco da Amazônia com expoentes do direito, advogados do mais alto nível, o meu guru e “pai jurídico” Dr. José Maria Meireles Amarantes, Dr. Sérgio Souza Filho de uma redação iluminada, Deusdedith Brasil de tirocínio incrível e infalível, Dr. Luiz Paulo Alvarez sábio e preciso, dr. José Torquato Alencar de rara inteligência e perspicácia, dr. Haroldo Pinheiro Filho, chamado por todos de “o professor”, o brilhante escritor dr. Agildo Monteiro e as espertas e experts dras. Ana Leuda, Ana Godinho, Ruth Fidalgo, Diana e outros também brilhantes causídicos.
Com esses luminares do direito, só podia dar coisa que presta! Ou se não deu, a culpa é exclusivamente minha! Rss.
Já fazia peças, recursos, pareceres etc., mas não era advogado senão um rábula com uma carteirinha da OAB “data venia” fajuta de estagiário. Na verdade, eu era um “escraviário”! (kkk).
Adilson Garcia
Professor, doutor em Direito pela PUC–SP, advogado e promotor de justiça aposentado.
Quando peguei a minha carteirinha vermelha de advogado, fiz logo um empréstimo na CAPAF (Caixa de Previdência do BASA), um mútuo apelidado de “Capafão”, um consignado em folha. Veja que o Basa foi o precursor dessa modalidade de empréstimo, a módicos jurinhos.
E corri comprar mesa, computador e cadeira. Montei uma baiúca chamada de escritório ali num dos prédios mais antigos da rua Manoel Barata, edifício Infante de Sagres, na porção antiga do bucólica Belém do Pará, terra maravilhosa com um povo amigo, alegre e festeiro.
Além de estar na rua com o nome de barata, o prédio também tinha muitas baratas. Tinha dia que o elevador funcionava, tinha dia que não. E lá se iam 14 andares nas escadas mofadas, dando bicudas em baratas…..kkkk. Chegava lá em cima com meu terno comprado no brechó todo suado. Tinha que botar no varal para secar e evaporar a inhaca!
Primeiro dia. Perguntei pra minha secretária roliça Cristina Tavares: será que vai aparecer algum cliente? A expectativa era grande, enquanto isso jogava paciência no computador, aquele tempo não tinha internet.
Eis que de repente cruza a porta de entrada do escritório uma velhinha com a cerviz curvada pelo tempo, de bengala, óculos fundo de garrafa, de traços lindos denunciando sua ancestralidade indígena, com seus passinhos lentos coadjuvada por uma senhora balzaquiana curvilínea de roupas brancas, linda como uma princesa, aumentou minha frequência cardíaca.
-Bom dia, doutor! (me senti o máximo, agora eu era um doutor rss) Sou a dentista aqui do andar de baixo. Vi seu anúncio nos classificados do jornal O Liberal.
-Bom dia, em que posso atendê-las?
-Essa é a minha tia, Dona Joana, 82 anos. Ficou viúva e negaram a aposentadoria do falecido. Será que tem jeito? Vou contar a história toda pela titia, porque ela mal enxerga e está praticamente surda.
Contou-me que D. Joana viveu por mais de 60 anos com o “de cujus” (morto no juridiquês) Ladislau, conhecido por “Pinduca Pobre”, porque era “cuspido e escarrado” o cantor Pinduca, o rei do carimbó paraense. Mas era pobre! Pinduca Pobre era folclórico porque fora o motorneiro do bonde de Belém e nas horas vagas arriscava um carimbó de primeira qualidade.
Dona Joana não teve filhos com Pinduca Pobre. Morava nos arrabaldes do bairro da Pedreira, onde cultivava horta e frutas para ajudar no orçamento familiar. Viu muitos moleques da rua, que pulavam seu cercado para saborear suas frutas virarem engenheiros, médicos, advogados, contadores, juízes…
O casal era muito conhecido. Dona Joana quando tinha saúde e jovialidade ainda fazia tapioca com queijo coalho e uma maniçoba cozinhada na lenha por uma semana, vinha gente do outro lado da cidade buscar.
Pinduca Pobre fazia sucesso no centro da cidade, conduzindo o bonde naquele trecho do comércio velho de Belém, o circuito começava na Igreja Matriz, seguia pela rua Padre Champagnat, cruzava a av. Portugal, subia pela rua João Alfredo e Santo Antônio, caía na Presidente Vargas em direção à avenida Nazaré e à praça santuária Justo Chermont. Era uma viagem fantástica e Pinduca Pobre brindava os passageiros com um carimbó improvisado numa caixinha de fósforo. Era show!
Viveram mais de seis décadas em absoluta fidelidade e carinho, em uma simbiose perfeita num lar abençoado. Pinduca rapazote não era bobo não: escolheu para rainha do lar e viver sua love story amazônica uma linda mulher de traços marajoaras marcantes, de olhos amendoados e boca esculpidos pelos deuses da floresta, cuja beleza nem a força implacável do tempo consumiu.
Se Deus não lhes deu filhos – foi vontade do Barba – deu-lhes fartura, amor, amigos aos montes, irmãos, sobrinhos e sobrinhos-netos. Enfim, uma vida humilde, mas feliz! Felicidade é o que se leva da vida, porque caixão de defunto não tem gaveta e mortalha não tem bolso. Disse Alexandre, o Grande, com peculiar sabedoria orientando seu féretro, “eu quero que minhas mãos fiquem para fora do caixão, de modo que as pessoas possam ver que viemos com as mãos vazias e de mãos vazias voltamos”.
Mas um dia uma tragédia se abateu sobre aquela casinha humilde de madeira, pintada com as cores púrpura, cor-de-rosa, verde e janelas brancas: um incêndio voraz destruiu tudo.
D. Joana conseguiu sair ilesa, mas Pinduca Pobre não teve a mesma sorte: morreu carbonizado. Não sobrou nada, nem documentos, fotografias, torrou tudo. D. Joana ficou só com a roupa do corpo e a fé cega em Nossa Senhora de Nazaré.
No Círio de Nazaré seguinte, D. Joana reuniu todas as suas forças e caminhou um bom trecho atrás da corda de joelhos, com uma casinha de miriti na cabeça. Desmaiou várias vezes no percurso e o seu joelho sangrava, tingindo de vermelho aquela tez morena enrugada em linhas paralelas de seu sangue bom. Mas como paraense de raiz, cumpriu sua promessa.
E na sua fé inabalável, N. Sra. de Nazaré apareceu por dentre as nuvens de Belém bem na hora da chuva que todo dia cai e lhe disse que um anjo iria aparecer na sua vida e lhe dar uma casinha para viver o restinho da existência terrena no conforto merecido que só os justos têm.
A boa velhinha me olhou de perto, ajustando bem as lentes grossas, esboçou um sorriso que ostentava mais gengiva que dentes e disse numa voz rouca e baixinha:
-O doutor é muito bonito, mas está ficando careca, né? Não se preocupe meu filho, porque nunca vi um careca pedindo esmola, até hoje só vi mendigo cabeludo. Eu tô com esperanças no doutor, os carecas são inteligentes. Me ajuda, faz justiça pra sua vozinha aqui, meu anjinho de N. Sra. de Nazaré!
Eu ainda tinha alguns fiapos de cabelo acima da testa, os famosos “heróis da resistência” e não entendi bem aquela história de anjo. Demorei um pouco pra responder para a velhinha porque fiquei alguns segundos digerindo aquelas lisonjeiras palavras da minha primeira cliente, bem como o destino cruel da minha calva, uma marcha inexorável por força da genética masculina.
Foi o tempo que ela teve para sacar da bolsinha esfarrapada um instrumento tipo um cone, parecia um chapeuzinho de palhaço afunilado, pôs no ouvido para poder me escutar. E eu disse:
-Obrigado, vozinha. Não prometo ganhar, mas vou dar o melhor de mim. Serei seu anjo da lei e da Virgem de Nazaré!
O INSS havia indeferido o pedido de aposentadoria porque segundo a lei da previdência, não basta prova testemunhal, tem que haver um início de prova material.
Dona Joana não casou no civil, não tivera filhos e os parcos documentos que provariam a relação “more uxorio” foram consumidos pelas chamas.
Discuti a causa com meus colegas experientes e todos foram unânimes em me aconselhar a deixar de mão porque era uma causa perdida.
-Perda de tempo, “cadete”! Vai dar com os burros n´água! (Disse-me um dos sábios advogados).
Confesso que fraquejei e cogitei de ligar para a família e renunciar ao mandato. Mas lembrei de uma brincadeira da infância “mamãe-mandou-eu-bater-nessa-daqui-mas-como-sou-teimoso-vou-bater-nessa-daqui”!
Meu raciocínio foi o seguinte: o máximo que pode acontecer será eu ganhar um “não”! “Não” ela já tinha! Então, se eu ganhar um “não” é um empate e não derrota! O que vier é lucro.
A minha teimosia não estava só no interesse financeiro dos honorários, mas também no inconformismo enquanto cidadão de ver pilantras aplicarem estelionatos com sucesso na previdência e uma pessoa idosa e carente que fazia jus ao benefício não ser atendida. Uma questão até de humanidade. O meu contrato era de êxito: ganhou, levou! Não ganhou, chupa o dedo!
Bem, o INSS quer início de prova material? Pois vai ter!!!
Uma estranha inspiração celestial baixou sobre mim, gastei um bocado do fosfato armazenado no meu cérebro e com minha caneta metamorfósica bolei uma estratégia “malígrina” senão maquiavélica para atender as exigências inflexíveis do INSS. Ajuizei uma ação de justificação que, após encerrada, o juiz entrega os autos originais à parte interessada. Portanto, é um documento! Eureka!
Fi-lo! A justiça oitivou doutores advogados, médicos, engenheiros, comerciantes, todos aqueles moleques citados que cresceram roubando frutas e fugindo nas ruas descalços com o bilau de fora quando gitinhos e D. Joana de vassoura na mão correndo atrás.
A juíza, depois de um “embargo auricular” entendeu o porquê daquela ação e sentenciou em audiência dando procedência para todos os fins, inclusive para “fins previdenciários” (quem não chora não mama: Excelência, dá pra colocar aí “pra fins previdenciários”? rsss). Deus a proteja para sempre!
Pois bem, com esse documento entrei com novo pedido no INSS e …. negaram. Recorri ao Conselho de Recursos da Previdência que era em Manaus e… negaram!
Carácoles, comecei a dar razão aos colegas advogados experientes! Mas não me dei por vencido.
Dizem dois ditados que “quem tem boca vai a Roma” e “água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”. Exercitei-os e não fui a Roma, porém a Brasília a bordo de um recurso, talvez o mais sentimental e poético recurso que impetrei até hoje. Um desabafo de um “cadete” do direito desolado com tamanha crueldade com aquela velhinha.
Disse no recurso que D. Joana não era a “Dona Georgina” (advogada famosa do RJ contumaz em aplicar golpes bilionários na previdência) e nem filha “solteirona” jovem e válida de militar que recebe poupuda e imoral pensão, mas uma pobre velhinha que tinha o direito de terminar seus últimos dias nessa efêmera passagem pela terra, com conforto e felicidade que tivera ao lado do seu único e eterno amor, que uma fatalidade os separou. Juntei uma ocorrência do incêndio do Corpo de Bombeiros e os autos integrais da ação de justificação.
Passado um bom tempo, talvez uns 2 anos, nem eu acreditava mais no êxito, eis que fui intimado de um Acórdão candango, de homens sábios e prudentes. Deram provimento ao meu recurso e eu senti os fundamentos do Eminente Relator molhados de lágrimas de emoção pelo tom de suas palavras. Os homens de Brasília haviam captado minha mensagem e no momento da decisão um anjo enviado por N. Sra. de Nazaré pairava sobre aquelas cabeças iluminando-as. Só pode, não tem outra explicação!
E eu, que zombara achando graça daquelas cenas dos peregrinos no Círio com objetos de seus desejos e milagres alcançados na cabeça, fui à Basílica Nazaré e diante daquele altar de uma beleza indescritível, no mesmo lugar onde eu recebera meu anel de bacharel das mãos do meu paraninfo dr. Amarante na missa de colação de grau, dobrei meu joelho diante da Virgem de Nazaré e supliquei perdão pela minha heresia pagã imperdoável.
Mas pensei lá com meus botões e meus livros, na minha baiúca que eu chamava de escritório: Dona Joana ganhou, mas não levou! Já deve ter atendido ao chamado Divino! Arrisquei e liguei para a sobrinha e deusa dentista, pedindo que trouxesse Dona Joana ao escritório, para a boa notícia alvissareira. Me deu uma vontade danada de arrancar um dente! Rss.
-Perfeito, doutor. Amanhã cedinho estarei com titia Joana no escritório.
Foi um alívio, estava vivinha da silva! Ufa! Nem dormi aquela noite pensando na Dona Joana, eu estava eufórico em falar perto do cone de ouvido dela: GANHAMOS VOZINHA!
Dona Joana entrou mansinha no escritório, arrastando a chinelinha, com um sorriso de orelha a orelha. Beijei a sua mão, como eu fazia com a minha vozinha italianinha Dona Olinda.
-Vozinha, ganhamos tudo, inclusive todos os retroativos, suficiente para construir um bangalô novinho. E ainda sobra dinheiro!
-Muito obrigado, Doutor. És o anjo que N. Sra. de Nazaré prometeu colocar no meu caminho. Deus te iluminará para sempre, promoverás justiça mundo afora e serás o anjo de milhares de injustiçados.
Eu havia combinado 20% de honorários, mas a família e Dona Joana me aquinhoaram com 30% em reconhecimento ao grau de zelo do trabalho e eu não reclamei (rss).
Troquei de carro na concessionária, o primeiro 0 km da minha vida. Mas isso não foi o mais importante para mim. O sentimento de alegria foi muito maior por reverter uma injustiça. Por isso, doravante dediquei-me aos estudos da previdência, matéria que eu odiava na academia de direito.
Por ironia do destino, anos depois assumi a cadeira de Seguridade Social na Universidade Federal do Amapá onde sou professor de carreira. Hoje leciono previdência em alguns semestres e mostro aos “cadetes” a importância da disciplina no mundo real, o espírito humanístico que a norteia e os infortúnios a que todos nós estamos sujeitos (como a velhice, a doença, os acidentes, a pobreza etc.) e a imprescindibilidade da matéria para aprovação em concurso jurídico.
E sempre ilustro minhas aulas com o caso da Dona Joana.
Em inúmeras ações previdenciárias repus a justiça tendo como arma a lei e o bom argumento. Recordo de um senhor idoso, peconheiro, que despencou de um pé de açaí e lesionou a coluna vertebral. Ficou inválido. E nada do INSS conceder a aposentadoria. Não tinha dinheiro para me pagar, mas numa atitude Robinwoodiana o defendi “pro bono”, ou seja, sem cobrar nada. Obtive êxito e o velhinho foi aposentado. Dias depois, o velhinho peconheiro, ao ser intimado do deferimento da aposentadoria levou-me os “honorários”:
-Doutor, de vez em quando aparece alguém que faz alguma coisa pela gente, o doutor é um mago!
-Não meu senhor, não é magia. É milagre de N. Sra. de Nazaré!
O velhinho não entendeu muito e em seguida me disse:
-Lhe trouxe de presente esse cupuaçu, o mais lindo da minha roça. É só o que eu tenho para lhe dar.
Fiz um suco daquele cupuaçu, o honorário mais delicioso da minha vida (rss).
O Barba ouviu a profecia da boa velhinha e me colocou um par de asas angelicais. Como promotor de justiça pude defender muitos doentes e idosos, assim como realizar o sonho de milhares de sem-tetos, atuando de forma determinante nas políticas públicas de habitação.
E todo ano vou a Belém no Círio e não contenho minhas lágrimas quando vejo os peregrinos devotos de N. Sra. de Nazaré com as casinhas de miriti na cabeça, caminhando atrás da corda.
Choro pois lembro da velhinha minha primeira cliente e o milagre alcançado pelas mãos da Santa de todos os paraenses.
Passei a compreender o sentido da frase “a fé remove montanhas”!