A DEFINIÇÃO ETIMOLÓGICA DAS ÁREAS DE RESSACA: Para melhor compreensão, fomos buscar na legislação, doutrina e regionalismo a terminologia de “áreas de ressaca”. O Código Florestal define várzeas de inundação (ou planície de inundação) como áreas marginais a cursos d’água sujeitas a enchentes e inundações periódicas e áreas úmidas os pantanais e superfícies terrestres cobertas de forma periódica por águas, formadas originalmente por florestas ou outras formas de vegetação adaptadas à inundação.
A Lei Estadual 0835/2004 definiu várzeas como terrenos baixos e levemente planos que se encontram junto às margens dos rios, inundáveis diariamente sob influência das marés, com vegetação predominantemente arbórea.
O Plano Diretor de Macapá (LC 026/2004) define por ressacas as áreas que se comportam como reservatórios naturais de água, apresentando um ecossistema rico e singular e que sofrem a influência das marés e das chuvas de forma temporária.
Concluo que o termo “ressacas” é uma expressão regional dada a um tipo de ambiente palustre caracterizado por enchentes sazonais e pela influência das marés, que tem um ecossistema próprio onde se constatam espécimes vegetais típicas (aningas, aguapés e buritizeiro) e a rica fauna ictiológica (jejus, traíras, acarás, tamuatás, tucunarés, jandiá, camarão, caranguejo e outros), também conhecida popularmente por “área de lago”.
A FAVELIZAÇÃO DAS APP: A sociedade precisa discutir a efetividade da tutela ambiental e a sua concretude, pois as áreas em questão estão se transformando em enormes bairros, em um processo de “favelização” horizontal, trazendo à balha a dicotomia ecocentrismo x antropocentrismo, causando dano ao meio ambiente de difícil ou impossível reparação, pois é pouco provável a demolição das habitações construídas.
Para corrigir esse grave atentado ambiental, os governos deveriam promover a recuperação das matas ciliares situada às margens da ressaca, urbanizar toda a área de influência, com a demolição de habitações construídas nas APP e recompor toda a área destruída.
E doravante, a CEA e CAESA seriam obrigadas a se absterem de efetuar qualquer tipo de fornecimento dos respectivos serviços concessionários, sem que estejam no planejamento municipal e nos termos do projeto urbanístico. As prefeituras fiscalizariam impedindo construções sem os respectivos alvarás de licença ou autorização de construção ou reforma de quaisquer obras, particulares ou públicas.
O Estado e Municípios deveriam montar uma comissão multidisciplinar, para a elaboração de projetos urbanísticos, paisagísticos e turísticos que contemplem a recuperação de todas as áreas, contando ainda com a fonte de recursos para implementação de medidas de desapropriação de todos os imóveis e benfeitorias que se encontram construídos na área questionada e a remoção dirigida das famílias para outra área de terra firme ou conjuntos habitacionais.
Mas isso, confesso, é uma utopia, meras quimeras. Montou comissão? Pronto, não dá em nada! A descrença nossa é muito grande!
Em meus estudos no doutorado da PUC-AP, identifiquei na SEINF, dentre outros, dois projetos magníficos nesse sentido: um da praia do Aturiá e outro na Ressaca do Congós, que impediria o avanço na área da Lagoa dos Índios, que é a nascente do Igarapé Fortaleza, um lindo e importante estuário que está com a sua morte anunciada.
DA PROTEÇÃO LEGAL DAS ÁREAS DE RESSACA: no campo teórico, há uma grande preocupação do Estado em preservar ambientes naturais com importantes funções ecológicas, dentre os quais se incluem as áreas de ressaca, razão pela qual a Constituição Federal e as normas federais, estaduais e municipais regulam o tema.
A CF preconiza no art. 225 o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, impondo-se a todos o dever de cuidar, atribuindo competência comum (art. 23) à União, Estados, Distrito Federal e Municípios para proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer uma de suas formas e preservar as florestas, a fauna e a flora.
Já aos Municípios a CF deu competência para promover o ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano (art. 30, VIII).
O Código Florestal aceita como APP áreas declaradas de interesse social por ato do Chefe do Poder Executivo, cobertas com florestas ou outras formas de vegetação destinadas a conter a erosão do solo e mitigar riscos de enchentes e deslizamentos de terra e de rocha; proteger as restingas ou veredas; proteger várzeas; abrigar exemplares da fauna ou da flora ameaçados de extinção; proteger sítios de excepcional beleza ou de valor científico, cultural ou histórico e assegurar condições de bem-estar público.
Dentro do regime de proteção das APP, a vegetação deverá ser mantida pelo proprietário ou possuidor da área e no caso de supressão de vegetação situada, obriga-se a promover a recomposição da vegetação, ressalvados os usos autorizados previstos no Código Florestal.
A intervenção ou a supressão de vegetação nativa em APP somente ocorrerá nas hipóteses de utilidade pública, de interesse social ou de baixo impacto ambiental.
Em caráter excepcional, em locais onde a função ecológica esteja comprometida, podem ser executadas obras habitacionais e de urbanização, inseridas em projetos de regularização fundiária de interesse social, em áreas urbanas consolidadas ocupadas por população de baixa renda.
Parece-me que esse será o caminho a ser adotado pelo Amapá, diante da sua hipossuficiência financeira de indenizar e remover famílias das áreas de ressaca.
A Lei nº 6.938/81 (política nacional de meio ambiente) traça diretrizes gerais para a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental, manutenção do equilíbrio ecológico, recuperação de áreas degradadas ou proteção de áreas ameaçadas.
A nossa pisoteada Constituição do Amapá prevê a especial proteção das áreas úmidas em seu art. 313 (V – proteger e restaurar a diversidade e a integridade do patrimônio genético, biológico, paisagístico, histórico e arquitetônico relativo ao meio ambiente; VI – definir, implantar e administrar espaços territoriais e seus componentes representativos de todos os ecossistemas originais a serem protegidos, sendo a alteração e supressão, incluindo as já existentes, permitidas somente por lei; XI – preservar os ecossistemas essenciais e promover o manejo ecológico de espécies; XII – zelar pelas áreas de preservação dos corpos aquáticos, principalmente, as nascentes, inclusive os olhos de água, cuja ocupação só se fará na forma da lei, mediante estudos de impactos ambientais) e dispõe no art. 315 que as terras marginais dos cursos d’água são consideradas áreas de preservação permanente, proibido o seu desmatamento. Pobre Constituição do Amapá: virou potoca!
A Lei Estadual nº 0455, de autoria do Deputado Manoel Brasil, que obrigava o Governo a delimitar e a fazer o tombamento das áreas de ressaca localizadas no Estado do Amapá, com a finalidade de preservar o valor paisagístico e a proteção do meio ambiente, morreu sem ser cumprida, vez que foi revogada pela Lei nº 0835, de autoria do Deputado Eider Pena, dispondo sobre a ocupação urbana e periurbana, reordenamento territorial, uso econômico e gestão ambiental das áreas de ressaca e várzea localizadas no Estado do Amapá, estendendo seu espectro de proteção a todas as áreas úmidas.
No nível Municipal, temos os Planos Diretores que determinam a garantia da adequada ocupação das áreas de ressaca.
O CONAMA disciplinou o assunto pela Resolução n. 004/85, revogada pela Res. 303/2002 e esta revogada pela polêmica Res. n° 500/2020, que suprime no âmbito daquele Conselho qualquer disciplinamento dessas áreas, o que está gerando inúmeras controvérsias, debates, judicialização e até estão pedindo a cabeça do Ministro do Meio Ambiente. No entanto, o tema agora está previsto no novo Código Florestal.
Por conseguinte, podemos concluir sem necessidade de maiores elucubrações que o arcabouço jurídico é suficiente para a defesa das áreas de ressaca, mas a efetividade dessa defesa passa por decisões políticas e conscientização da sociedade, pois a ocupação irregular é reflexo da ausência de políticas públicas habitacionais eficientes, pressionando a população carente e sem-teto a construir suas moradias nas APPs e, consequentemente, incursar na seara penal da lei de crimes ambientais (Lei 9.605/98).
Mas você já viu alguém ser condenado por depredar APP na Potocolândia?
Tudo é potoca! Potoca! Potoca! Potoca!
OS DANOS SOCIOAMBIENTAIS: As áreas urbanas de ressacas (APP) sofrem pela antropização (“favelização”) e o controle público é precário, sendo imprescindível para o desenvolvimento sustentável a inserção efetiva do Amapá na política nacional de saneamento básico e de habitação.
Estudos do Ministério das Cidades apontam que em torno de 26% dos domicílios de Macapá e Santana vivem em condições sub-humanas, em habitações classificadas como subnormais, ou seja, aquelas que não preenchem as condições mínimas para o bem estar humano, como espaço adequado, ventilação, iluminação, abastecimento de água potável, sistema de esgoto, proteção contra insetos e outros animais. Isso representa um total de 40.000 famílias.
Os danos ambientais nesse “habitat” singular podem ser irreversíveis ou de difícil reparação diante da degradação da qualidade ambiental pelo despejo de esgotos domésticos e lixos nas águas da ressaca, destruição da mata ciliar para construção de palafitas com mínimas condições de saneamento, obstrução dos canais naturais por aterros clandestinos. O acúmulo de lixo enseja a proliferação de micro e macro vetores.
Outrossim, há uma tendência inercial dos moradores em continuarem a construir suas casas, mesmo diante da possibilidade de transferência para outros locais com melhores condições de infraestrutura.
Essa dinâmica populacional e sua interface ambiental tem como principal fomento a falta de políticas públicas de habitação e saneamento básico, que é direito ao meio ambiente equilibrado de natureza difusa que vem sendo sonegado, imprescindível para um efetivo desenvolvimento socioambiental, sem o qual não há como sustentar a ocorrência do ecodesenvolvimento, termo lançado por Maurice Strong na Conferência de Estocolmo (1972) e cujos princípios foram aperfeiçoados por Ignacy Sachs, considerando como principais aspectos a satisfação das necessidades humanas básicas, a solidariedade com as gerações futuras, a participação da população envolvida e o respeito às culturas nativas.
Ou seja, essa mudança no arranjo urbano provoca danos ambientais significativos e irremediáveis porque as áreas de ressaca funcionam como um grande berçário da fauna ictiológica preservando a biodiversidade.
Essas áreas úmidas atuam na manutenção do equilíbrio térmico da cidade agindo como corredores naturais de ventilação, diminuindo o clima quente típico desta região equatorial e no escoamento pluvial, porquanto a ocupação dessas APPs compromete o escoamento da água das chuvas, provocando enchentes e sérios riscos materiais (afogamentos no período chuvoso e incêndios nos estios) e de saúde (como dengue, hepatite, malária, doenças epidérmica etc.) para os ocupantes irregulares dessas áreas.
Por outra vertente, há também o dano paisagístico afetando a beleza cênica das áreas de ressacas, atingindo também o patrimônio cultural protegido pela CF/88 (art. 216, V).
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Está muito em voga o tema judicialização de políticas públicas, que ocorre quando o judiciário é acionado para resolver por meio das ações coletivas as opções políticas da administração inerte.
As ações civis públicas e outras de natureza difusa esbarram no campo da discricionariedade das políticas públicas e o papel do Poder Judiciário.
De outra vertente, há ferrenha discussão sobre a possibilidade ou não de o Poder Judiciário dar respostas quanto à ausência de políticas públicas por parte do Executivo em todos os seus níveis, dados os limites constitucionais do ativismo judicial que, em tese, não poderia substituir os legitimados democraticamente para implementá-las, ensejando até o questionamento sobre a usurpação de competências administrativas pelo judiciário, ressalvado, obviamente, o princípio da inafastabilidade da jurisdição.
Contudo, é fato que as promessas constitucionais não vêm sendo cumpridas a contento e com a celeridade devida, o que tem levado os jurisdicionados através dos órgãos e entidades legitimados a convocarem os tribunais para o cenário político, que vem se destacando como efetivo articulador de políticas públicas.
Somente com uma política ambiental conjunta da União, Estado e Município poder-se-á controlar e preservar de forma eficaz o meio ambiente.
Portanto, a efetividade da tutela ambiental esbarra nas condições materiais do Governo do Amapá e seus famélicos municípios, trazendo a lume a teoria da reserva do possível, traduzida em rápido resumo como insuficiência de recursos, condicionando a prestação do Estado à existência de orçamentos públicos disponíveis.
Em Santana uma ação civil pública da Promotoria do Meio Ambiente, da qual eu era titular, transitou em julgado depois de 14 anos. Como retirar 500 famílias, comércios, igrejas, motéis etc. das áreas do bairro Provedor? Vamos ter que relativizar a coisa julgada porque a sentença foi uma “vitória de Pirro”.
Enquanto esse terrível dano ambiental está corroendo nosso ambiente urbano como impingem braba, há políticos e “ecochatos” profetas do apocalipse soprando trombetas contra o agronegócio, como se os produtores que põem alimentos na nossa mesa fossem os vilões do meio ambiente, ainda que mantidas as reservas legais.
Sejam bem-vindos à Potocolândia!
Adilson Garcia
Professor, doutor em Direito pela PUC–SP, advogado e promotor de justiça aposentado.