Em 1967 estávamos em Belém, Pará, e de lá saíamos a subir para o Rio Jari. Naquela época já existiam garimpeiros em suas cabeceiras. Subindo por difíceis passagens e cachoeiras, em estâncias profundas, vivia sozinho “seu” Antônio, autêntico caiçara. Acostumamo-nos a levar alguns gêneros de primeira necessidade e querosene para o homem solitário. Ele sempre retribuía a atenção, dando ou vendendo alguma coisa extrativada da mata ou do rio para nós. Naquele cafundó do judas sempre havia alguma coisinha interessante que ele fazia, achava ou caçava. Sempre nos perguntávamos sobre o porquê desse homem viver tão sozinho naquele mundão.
Quando no rio, usava uma dessas pequenas canoas em que se vai na proa, batendo o remo ou catuá, ajoelhado, sempre tocando para a frente. De vez em quando ele descia o rio, retornando, subindo vagarosamente, sempre em longas jornadas. Como de costume, todo lugar na Amazônia é longe.
Taciturno, silencioso, “seu” Antônio nunca pedia favores, nada. Só aceitava algum presente depois de insistirmos. Recordo-me que na ocasião, meu amigo Bonfim e eu instamos para que arrumasse uma mulher, pelo menos para tê-la por ali a amenizar a solidão. Uma vez, o encontramos descendo o Jari. Disse que estava indo para Belém. Por nossa parte e equipamento chegaríamos bem antes dele, mesmo tendo sofrido um acidente mais à frente.
Alcançamos a foz do Jari em meio ao lusco-fusco do entardecer, com a lancha que na verdade era uma voadeira potente. Ao entrarmos no Rio Amazonas não percebemos a passagem de um navio e a onda provocada cobriu a lancha de uma vez. Fomos jogados para o fundo com tudo, sem direito a nada salvar. Sorte nossa haver na outra margem um grupo de pescadores. Eles nos viram virar e tiraram-nos dali. Foi só um susto que não afetou nosso humor, só o bolso. De carona chegamos a Belém e antes de arranjar outra lancha resolvemos que arrumaríamos uma mulher para “seu” Antônio.
Começamos a andar para cima e para baixo na cidade, atentos. Tínhamos de conseguir alguém que se dispusesse a subir com o senhor solitário, uma mulher que soubesse cuidar de pessoa de comportamento ao mesmo tempo fácil, mas de pouca conversa e muito quieto. O difícil seria ela se adaptar ao modus vivendi dele. Finalmente encontramos uma senhora de aparência razoável, cabocla como ele, gente boa de trabalhos caseiros e manuais que se dispôs a ir com “seu” Antônio. Ficamos na expectativa, contando o tempo para ele chegar, aprovar e levar a mulher. Era uma alegria começar a resolver aquilo.
Depois houve o trabalho para convencer o homem. Na apresentação do casal, ele já se engraçou um pouco, estava mais simpático à ideia. Talvez não sentisse de maneira negativa a mudança de vida e hábitos que ocorreria com a presença feminina. No dia da partida do novo par, demos a “seu” Antônio alguns presentes de “casamento” e depois de se despedirem de nós, saíram em transporte, para a partir da foz Jari sair em canoa própria a remar rio acima, ajoelhado à frente e a mulher lá atrás, deitadinha.
Quase dois meses depois, nós o reencontramos. Subíamos o rio mais uma vez e lá estava “seu” Antônio à margem, mas, sem a mulher. Ele não falava nada e nós ali, curiosos, procurando brecha para saber sobre ela. Tínhamos levado alguma coisa para os dois. Finalmente, não aguentando mais, fizemos a pergunta entalada: “cadê ela? ”.
O final da história deixou-nos estarrecidos e com ela, a lição para o resto da vida de que não deveríamos, irresponsavelmente, imiscuir-nos na vida dos outros. “Seu” Antônio transformara-se em um homem muito mais triste e fechado e com motivo. Na vinda, após o “casamento”, foram horas e horas remando em silêncio, procurando também se desvencilhar dos galhos dos arbustos, porque rio acima, geralmente o canoeiro anda muito perto da margem para pegar uma correnteza menos forte. Ele, em silêncio, com os sentidos inteiramente aguçados porque a proximidade da terra firme expõe a riscos de qualquer ataque perigoso. Também ela, muito calada, à antiga, de pouca conversa. Mais de seis horas naquele silêncio. O único ruído ouvido era o barulho cadenciado do remo na água. De repente, ela dirige a palavra ao companheiro. “Seu” Antônio de costas, ajoelhado ainda, espingarda do lado, ouviu tão diferente som em seus hábitos, levou baita susto, havendo uma quebra do serviço da atenção. Virou-se rapidamente com a arma, disparando em direção à voz, imaginando um agressor, matando a mulher. Infeliz acidente. Não teve sequer lua de mel. Isso o deprimiu muito. Nunca mais foi o mesmo homem, se não alegre, nunca tão triste.
Ficamos aborrecidos com a tragédia para a qual havíamos concorrido. Ficou-nos provado e evidenciada a impossibilidade em interferir mesmo ajudando à alguém individualmente, ou qualquer na Amazônia, sem observação de seus costumes ou direta solicitação.
Todas as vezes que presenciei ingerências de caráter pessoal, o resultado foi desastroso e perigoso. Incluindo as que são feitas pelo próprio Governo. Muitas vezes, é melhor não interferir na intimidade dos outros. Mais ainda, na vida de um homem como “seu” Antônio, que parecia ter jurado até a morte fidelidade às águas do rio.
José Altino
Jornalista diário, escritor, aviador, ex-fundador da União Sindical dos Garimpeiros da Amazônia Legal, ex-membro do Conselho Superior de Minas.