O menino, todavia, em minha frente, estava bem cuidado, cheiroso e alimentado. A cuidadora, senhora de pouca posse, pedia-me ajuda. Ela conseguiu convencer a genitora de estar ali, com fim de solucionar a “inexistência” do guri.
O que se poderia querer: teve seus rebentos em locais outros, que não em hospital. Não havia nascido-vivo. Não havia registro de existência daquele pequeno ser sorridente. A procriadora, explicando sua situação de vida, indagou-me a chance de “dar” a criança de vez, já que, em seu barraco -moradia que habitava, havia deixado outro, de menos de um ano, com uma vizinha.
Nesse instante, articulava com mãos surradas, cheiro de álcool e alguma coisa mais. O rapazinho, nem dela se aproximava, pedindo à cuidadora que o levasse dali. Dentro em pouco, dormiu, aconchegado ao colo da “mãe postiça”. Entre uma e outra conversa, dizia a jovem mãe de tantos que nada esperava da vida. Sua família não cuidou dela e tudo o que lhe restava era aplacar a dor do jeito que aprendeu.
Sem lenço e sem documento, estava em minha frente a imagem do abandono familiar e suas sequelas sem fim. Logo, peguei-me buscando, no olhar da mulher, alguma ponta de amor, remorso ou carência. Ela, de banda, desviando olhar, dizia que “não tinha nada não, era melhor pra eles, porque eles tinham quem cuidasse”. Lutando para manter a concentração no objetivo da visita, acabei esquecendo da(s) criança(s). Alinhei com a mãe.
Desencadeados os eventos, daquela vida, não contive em colocar a dita no centro da história. Consolei-a de início. Acalmei, também. A cadeira a incomodava. Mexer no passado a irritava. Ela, então, conduziu a proza. Relatou cada motivação sua. Negou arrependimento. Sem uma palavra da parte de cá, seguiu fundamentando cada ato seu, como o melhor. Estar com ela, conviver, poderia representar risco às crianças- disse-me.
O autoabandono, a autonegação e a autorreprovação permaneciam, em toneladas, naquela mente materna. Sem perspectivas e com poucas referências positivas de valores, o que ela ofertaria de estima às crianças? Quando parecia o fim, contou-me que já “perdeu” também. Afinal, não podia trazer mais ao mundo a sofrer. Desse momento em diante, não enxerguei outra pessoa. Fixei nela. Que deserto se faz maior e mais sufocante que o dela? Teria cura tanta dor? O que amenizaria seu sofrer, ainda nessa vida? Nada emergiu como resposta.
Tempos depois, convocando valores familiares, recordei daquele episódio. Em discussão de outro assunto, o amigo Zé Altino, a quem recorro e de quem leio aventuras calorosas e desventuras intrigantes, explicou: falta berço. Assim, surgiu-me o clarear daquela infeliz lembrança.
O berço materno não remete a condições financeiras ou teológicas. Menos ainda a derivações ideológicas. Tendo a confundi-lo com os valores essenciais de cada célula familiar. Quando o conjunto desfavorece a convivência pacífica e harmônica, a sorte, o vento, a “escola”, o vizinho e a mídia dominam geral. Naquele caso, a figura feminina hierarquicamente superior a ela estava apática e sem voz. Certeza, se tivesse algum esboço de valores morais, esqueceu entre um bofetão e outro.
Álcool, drogas, relações sexuais com menores e crianças, ausência de qualquer traço de espiritualidade – sem nota religiosa, abusos físicos e psicológicos e indução à criminalidade davam o tom, daquele “lar” – recordei.
Conceber, pois, normalidade a tais aspectos sociais como norteadores de crianças e jovens é forçar narrativa. À família, foram conferidos mecanismos importantes, para conter esses descaminhos: os ditos valores familiares.
São eles princípios, regras e analogias, que conduzem cada ação e que fornecem ensinamentos, dotados de importância e reflexos, na sociedade. Eliminando-os, a função social da família perde a razão de ser.
Sobre outros atores, calo-me. Na condição de mãe, apego-me à esperança da evolução humana, a começar por perceber que a “opção” de abandonar, entregar, abortar e fazer do corpo o que quiser é um FARDO PESADO DEMAIS, para servir de temática ideológica e de bandeira política. Quem passou entende, sente e padece, mas não deseja ao pior desafeto. Quem nunca o suportou, ajudaria, abstendo-se ou não disseminando às famílias brasileiras tamanho desapreço social.
