A Suprema Corte decidiu, no dia 29 de novembro, com repercussão geral, que os veículos de comunicação poderão vir a ser responsabilizados por falas de terceiros.
Antes de avançar, perguntemos: como ficariam os órgãos de imprensa diante de algo que candidato possa dizer na campanha eleitoral? Essa grandeza deve ser considerada, desde logo. Como entrevistariam candidatos, a partir de agora?
Aliás, se a questão for pensar em responsabilidade civil, como ficariam as próprias propagandas eleitorais, nas épocas das eleições e a sua divulgação pela imprensa e pelos TREs?
Cogitamos do extremo apenas para introdutória reflexão.
A comentada decisão judicial gerou matérias e comentários nas redes sociais. De todas, adotamos o altaneiro posicionamento da Associação Brasileira de Imprensa, que, no mesmo dia, no seu site, publicou texto que assim finaliza: “O presidente da ABI, Octávio Costa, considera que a interferência do STF na liberdade de imprensa é preocupante, mas o “dever de cuidado” é uma atenuante. A ABI aguarda a publicação do inteiro teor da decisão para se manifestar, junto com outras entidades, uma vez que algumas questões, como o caso de entrevistas ao vivo, por exemplo, ainda precisam ser esclarecidas.” (site da ABI, 29.11.2023).
O grande Ruy Barbosa nos legou obra interessante, intitulada A imprensa e o dever da verdade, onde escreveu que “imprensa e liberdade, jornalismo e consciência, são termos de uma só equação. Onde a manifestação da consciência não for independente, não há jornalismo. Onde a imprensa existir, a independência no escrever é irrecusável”.
De fato, há valores que só se reconhece em sua dimensão e estatura quando perdidos. É como a liberdade, que melhor se explica quando é tolhida; a
saúde, que se valoriza com a doença; a vida desperdiçada, que mais se apercebe com a iminência da morte.
saúde, que se valoriza com a doença; a vida desperdiçada, que mais se apercebe com a iminência da morte.
A liberdade de imprensa é um desses valores. É elemento estruturante e fundamental dos regimes democráticos e está acima de qualquer negociação jurídico-política. Sobre isso, muito já se escreveu e se deverá escrever, mesmo já sendo sólido e reconhecido valor ligado ao direito à informação. Jamais, em tempo algum, a caneta vermelha da censura deve traçar rabiscos sobre texto ou fala veiculada.
Da mesma estatura é o direito de discordar, que é tão importante quanto o direito de concordar. Com a imprensa livre, essa concordância ou discordância cabe aos leitores e aos telespectadores. Resistir ou discordar são traços da existência. Existimos quando resistimos, quando o nosso senso crítico se afia e quando podemos falar e nos expressar, sem medo dos censores dos tempos cinzentos da Ditadura derrotada.
Aliás, Dom Quixote não achava loucura ou utopia tentar mudar o mundo, por acreditar ser questão de Justiça. Nessa linha, os veículos de informação devem ter enaltecida a liberdade para informar e servir para a verdade de cada um, nesse propósito de avanço e melhoria do nosso tempo. Albert Camus, escritor franco-argelino, já escreveu: “Sim, submissão à verdade profunda que procuro, minha verdade, mas também a dos meus e deste país.” Como contraponto e apenas para reflexão, podemos convir que dizer a verdade nem sempre agrada e que parece que mais nos deixamos seduzir pelos fatos manipulados do que pela verdade nua e crua.
Mas não é disso o que este artigo deve tratar e nem do que cuidam a decisão judicial e as notícias pela imprensa. É importante considerar que para se capturar a essência de algo como inverídico e passível dessa responsabilização, o processo exigiria se descobrir a relação subjetiva de quem declara e a declaração ser cotejada com a verdade e, também, se perceber se esta se concretiza ou nega e se há manipulação na narrativa. Ora, o que se fala decorre de um processo de comunicação, que envolve a mensagem, a emissão desta por alguém e a sua recepção por outrem.
Ademais, sejamos razoáveis, só haveria uma verdade ou versão da verdade? Quem decidiria isso e com que valores? Qual o lugar de fala? É fácil perceber que há muitos fatores em jogo…
Como nos disse José Saramago, no livro A Bagagem do Viajante: “Ao contrário do que afirmam os ingênuos (todos o somos uma vez por outra), não basta dizer a verdade. […] A verdade é apenas meio caminho, a outra metade chama-se credibilidade. Por isso há mentiras que passam por verdades, e verdades que são tidas por mentiras.”
Falamos nisso para se levantar a bandeira de que há aspectos muito sutis em várias circunstâncias.
Por fim, é evidente a fundamental necessidade de se conhecer o teor da decisão judicial, inclusive para o oferecimento de eventual recurso de embargos de declaração, para aclarar aspectos porventura obscuros, omissos ou contraditórios, inclusive no que diz respeito à eventual “solidariedade jurídica” entre a imprensa e a pessoa que fizer a declaração questionável, assim como com relação ao funcionamento dos programas que não sejam previamente gravados e, portanto, que ocorram “ao vivo” – talvez, até, acerca daqueles eleitorais e gratuitos, que ocorrem nas épocas das eleições…
Entrevistar candidato, então, poderia se tornar algo extremamente perigoso para jornais, revistas e tvs!
Sob outro foco, para que órgão de imprensa não caia nessa responsabilização (objeto da decisão judicial antes referida) talvez tivesse que “censurar” a manifestação escrita ou verbal das pessoas! Se assim fosse, se colocaria na posição jurídica de responder por tal hipotética censura… Que paradoxo: ou responderá pela censura ao terceiro ou será solidariamente responsável com as suas declarações!
De toda forma, muito do que poderia ser dito sobre a liberdade de imprensa consta em obras altamente significativas. Até Karl Marx escreveu a respeito, no livro intitulado Liberdade de Imprensa. A propósito, lembramos que Nelson Werneck Sodré possui obra intangível, intitulada História da Imprensa no Brasil: vale a leitura.
No âmbito do Poder Judiciário brasileiro, é bom relembrar que, em idos de 2018, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ realizou o seminário “30 anos sem censura: a Constituição de 1988 e a liberdade de imprensa”, no qual a Ministra Presidente declarou, na abertura, que “Sem imprensa livre, o Poder Judiciário e o Estado não funcionam bem” (CNJ, site, 11.6.2018).
A liberdade de imprensa carrega consigo a liberdade de expressão, em defesa da qual o prestigioso Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil criou Comissão Especial, em julho de 2022: “A ideia é que a OAB Nacional tenha um órgão de trabalho sobre este tema, para que os operadores do direito possam refletir e atuar sobre o papel do Judiciário de assegurar a liberdade de expressão e de impedir quaisquer atos de inibição à livre circulação de ideias” (www.oab.org.br, site, Notícias, 06.7.2022)
Aguardemos a publicação da decisão, eventuais recursos e o trânsito em julgado, bem como as considerações do tema nas instâncias próprias, desejando que o caminho escolhido esteja na esteira da liberdade.