E, claro, por impulso, todos olhamos e ela ria, na sua inocência de criança. A mesma inocência de quando se brincava com folhas do jardim, fazendo comidinha ou imaginando que era uma moto a bicicleta ainda com rodinhas, de quando se brincava ao volante do carro, imaginando dirigir, enquanto o pai o lavava, numa manhã de sábado. A mesma inocência de quando se brincava com formigas, pegando cigarra, correndo atrás de galinhas e outros animais, das pipas soltas ao vento, de se apanhar conchas na praia, de brincar de alimentar peixinhos à beira dos rios… Tempo de se assistir a filmes na TV preto e branco, que ficava na sala e servia à toda a família, unida.
Era um tempo em que a alegria e a paz reinavam nos corações dos pequenos e éramos nós (!) esses pequenos.
O que se perdeu, no tempo? Crescemos e deixamos de ter essa alegria e paz? Ou crescemos e criamos medos e monstros imaginários, deixando ao largo a alegria e a paz e pureza das crianças, razão pela qual existem por aí tantas doenças e dramas e tantos doentes e remédios?
Paracelso já dizia que tudo é veneno, dependendo da dose. Ora, se o microcosmo do nosso corpo tem os mesmos elementos químicos da natureza e se precisamos de tantos remédios fabricados em laboratório, em parte não significa uma tentativa de repormos substâncias químicas que nos faltam ou que não metabolizamos bem, por estar afastados da natureza e do macrocosmo, estando assim sabotando a nossa própria saúde e bem estar?
Nos nossos sonhos de criança, não imaginávamos comprar um relógio caro ou uma viagem que passasse pelo Taj Mahal ou Báli ou o Central Park. Não pensávamos em nada além de viagens com os pais, aliás em família nos entretendo nas estradas, olhando paisagens e o formato das nuvens ou contando carros de tal modelo ou de tal cor: -“só vale fusca vermelho”. Não havia o isolamento decorrente das telas de vídeo hoje existentes em encostos dos bancos de alguns carros ou games portáteis que nem deixam as crianças ver as paisagens. Tínhamos viagens para encontros de família. As solitárias ou sonhadoras viagens heróicas eram por 20.000 léguas submarinas, por Viagem ao Centro da Terra, por ir à lua. Em nossas brincadeiras tínhamos roupas de policiais, médicos ou bombeiros – heróis de verdade e do nosso cotidiano – e não de importados super-heróis imaginários…
Por vezes vemos a alegria mais intensa nas brincadeiras sinceras como as de outrora, como pedalar bicicletas por aí, jogar bola ou outras atividades coletivas, diferentemente das brincadeiras através de solitários games…
Sempre ouvimos dos mais velhos dizer que no tempo deles é que era bom. Mas, nos últimos tempos, as mudanças são tantas e tão ágeis que já ouço jovens – como minhas filhas – dizer que “no tempo delas de crianças é que era bom”! Isso me impressiona!
Será que daqui há poucos anos uma criança diria brincando e sonhando que há um boi na árvore ou não o faria por que não sai de casa por medo da violência ou porque não sabe o que é um boi, uma vaca ou uma árvore? Há crianças que acham que o leite vem da caixinha, do mesmo modo que há as que comem frango, mas não os associam às galinhas!
Cada vez mais as cidades crescem de tamanho e é fato que a vida nas grandes cidades nos afasta do convívio com esses animais, como bois e cavalos etc. Portanto, não é improvável que crianças cresçam em grandes centros urbanos sem ver de perto um boi… Antigamente íamos aos zoológicos para ver os animais selvagens, mas hoje em dia até animais como galinhas e patos e bois e carneiros já precisam estar em locais assim, para serem apresentados às crianças!
Vivemos com medo de sentir medo no futuro, mas o que fazemos por isso no presente?
Conta-se que há Séculos ia a Peste a caminho de Bagdá, quando encontrou-se com Nasrudin, pertencente a um povo nômade, de região que hoje fica na Turquia. Nasrudim então perguntou onde ia a Peste, quando esta lhe respondeu que iria à Bagdá, matar dez mil pessoas. Tempos depois, a Peste voltou a se encontrar com Nasrudin e esse lhe falou que ela lhe mentira, porque morreram cem mil pessoas. A Peste insistiu que cumpriu o prometido, dizendo que só matou dez mil pessoas, informando que os outros 90 mil morreram de medo!
Estamos morrendo de medo do futuro, medo do Covid, medo do fim do mundo, medo das consequências das queimadas, medo da 3ª Guerra Mundial, medo de que um grande Meteoro se choque com a Terra daqui há alguns séculos… Alguns medos reais, outros imaginários. Alguns medos críveis, outros pura ansiedade. Alguns adversários reais, outros risíveis, outros pesadelos que assolam as nossas noites de sono e as transformam em indormidas noites, com suas sombras fantasmagóricas.
Para alguns desses medos, não há solução, afinal, não mais estaremos aqui se o Meteoro se chocar com a Terra daqui há alguns séculos (embora pesquisas científicas hoje possam ajudar aos nossos descendentes, para algo que lá no remoto futuro se possa a respeito fazer – ou não). Para outros medos há protocolos de segurança, como os protocolos médicos diante do Covid 19, que ao povo recomendam o uso de máscaras, álcool gel e o isolamento social – mas parece que grande parte da população acha, por conta própria, que tais protocolos não mais são necessários. Aliás, viajei nesses dias por cidades do interior de estados vizinhos e vi todos com máscaras, barreiras sanitárias nas entradas dos centros urbanos, pousadas servindo o café da manhã nos quartos para que não se usasse os salões de refeição, hotéis individualizando em embalagens (uma a uma) fatias de pão, de queijo, de frios etc, por precaução e respeito ao próximo, além de extremos cuidados nos restaurantes, como luvas para os clientes etc, em total contraponto ao que temos visto em grandes cidades, como no Rio de Janeiro, onde – sem comentários – abundam desrespeitos aos protocolos e aglomerações.
Sempre busquemos um culpado. No outro, um inimigo em outro povo, um adversário em outro desconhecido ser, em parte para salvar nossa culpa e redimir nossa inocência. Contudo, o Covid 19 de algum modo veio nos unir. Todos de algum modo estamos vulneráveis a isso. Veio para ficar e nos ensinar que não adiantará um povo desenvolver vacina para si se as viagens internacionais são realidade e o potencial de contágio é imenso. Em verdade, mais do que se achar um culpado, o importante é se achar solução e em caráter global. Também não adianta que muitos sigam os protocolos de segurança se outros os desrespeitam e desafiam.
A humanidade é uma só, perante o Covid-19, perante as nuvens de fumaça decorrente das noticiadas queimadas, perante os desequilíbrios ambientais pelo desmatamento, pela imensa emissão de gases na atmosfera, pelo aquecimento global etc
As queimadas acendem mais do que secas matas, pela ação do clima. Acendem o ódio entre nações, acende o ódio contra os piromaníacos, acende o ódio contra as queimadas ilegais. Mas no final talvez se misture esse ódio contra a própria natureza que, milenarmente, de tempos em tempos, queima a Savana africana e as matas de campos por aí, não sendo impróprio lembrar que a Natureza levou milhares de anos para proteger com a casca grossa de cortiça as árvores de tortos troncos e os frutos (como o Tingui e outros) Cerrado contra as queimadas – muito antes do Descobrimento do Brasil e da chegada dos homens europeus, com suas técnicas de plantação e de criação e de queimada (não se esquecendo da difundida técnica da Coivara). Misturar as queimadas naturais com as queimadas criminosas, não resolve o problema.
Paracelso, como lembramos acima, dizia que tudo é veneno, dependendo da dose. Nesse rumo de ideias, não estaríamos agora consumindo o veneno que produzimos e nos envenenando? O veneno da falta de empatia, do preconceito, dos tortos conceitos, da informação inexata e preconceituosa? Não cresceram em demasia as megalópoles e o seu ar nos envenena, causando ou agravando doenças respiratórias? Não cresceram demais as indústrias na sua sanha de alcançar cada vez mais consumidores e assim excedeu a capacidade de reciclagem natural do ar em alguns locais? Não poluímos demais alguns rios, a ponto de extinguir-lhes a vida nativa, ao não planejar o tratamento de esgoto, produzir e abusar do uso de detergentes e poluentes químicos, aterrar nascentes, desviar cursos d`água, derramar efluxos lodosos e contaminados de barragens industriais, tudo para construir bairros, casas, cidades, condomínios? Os engarrafamentos das cidades mostram nas ruas o desequilíbrio da vida ali e já consta haver congestionamento até de satélites ao redor da Terra! Tantos desequilíbrios…
Não é a toa que muitos viajam em suas férias para locais onde há praias ou cachoeiras ou natureza mais intocada… O que buscam esses viajantes?
Buscam uma fuga do seu cotidiano opressor ou distância das drogas sintéticas que consumimos para controlar a pressão, o sono, dar ânimo ou nos fazer suportar o peso dos super-heróis que não somos?
Buscamos um pouco de contato com a alva areia da praia, com o vermelho barro – com a cor carmim, daquela madeira que dá nome ao nosso Brasil – com o verde das matas, com o colorido dos pássaros…
Viajamos e fotografamos água transparente dos rios e cachoeiras!
O que deveria ser natural virou motivo de registro fotográfico e de comentários em aplicativos de compartilhamento de foto, do tipo “vejam que água transparente”!
Viajamos e fotografamos a água do mar aqui ou acolá, em busca sempre de locais limpos, paradisíacos, com coqueiros e natureza…
Viajamos em busca de uma conexão com a nossa infância, onde não nos percamos em pesadelos do dia a dia, com contas para pagar, com barulho, poluição, desemprego, violência, apartamentos pequenos, o preço das coisas, a falsa vida vivida para ganhar curtidas de gente que nem liga para o que sentimos de verdade…. viajamos em busca de algo perdido no tempo… quem sabe numa dessas viagens à natureza mais pura e intocada, ali, no contato com o nosso eu mais íntimo, com a essência da pureza dos nossos sentidos, da infância ainda não por inteiro perdida em nossos corações e alma, consigamos nos permitir imaginar e sentir coisas que nos curem e, com paz, ver que há bois ou outros animais e formas nas árvores ou nas nuvens dos céus… e sentir o leve soprar da paz e felicidade em nossos corações e mentes!
Rogerio Reis Devisate.
Advogado. Defensor Público/RJ junto ao STF, STJ e TJ/RJ. Palestrante. Escritor.