Sem pudor, arrebatei o título desta matéria do filme da Netflix “Coda”, traduzido como “A Última Nota”. Para não correr risco de ser processado pelo canal de “streaming”, vou fazer propaganda do filme. A ele atribuí cinco estrelas, nota máxima em termos de avaliação. Não pelo enredo, bastante linear, até, mas pela revelação da força destrutiva de um amor interrompido que não quer ceder lugar a um novo que se anuncia, aliado a uma sucessão de paisagens estonteantes do outono europeu e com uma trilha sonora desfiando belíssimas peças de Beethoven, Schumann, Bach, Rachmaninoff, Scriabin, Chopin, Bizet. Para mim, ato falho veio na sequência do filme em que músicos profissionais e amantes da música fazem deboche da obra de Richard Wagner. É sacrilégio ver personagens fazendo pouco do trabalho do músico alemão, compositor revolucionário genial, criador de joias da música erudita como a tetralogia do “Anel dos Nibelungos”, reveladora da Totalkunst (Arte Total) de Wagner, isso sem falar em jóias melódicas como a “Canção da Estrela Vespertina”, da ópera Tannhäuser; a explosão de alegria no coro da Matrosen e ária do timoneiro (Steuermann, lass die Wacht) no “Navio Fantasma” (Der Fliegende Holländer); na sublime Liebestod (“Morte do Amor”) de “Tristão e Isolda”; da construção quase sacra da ópera “Parsifal”. Em suma: momento deplorável num filme lindo foi aquele em que os personagens debocham da obra wagneriana. Colocam-se na posição sacrílega daqueles críticos de séculos atrás que, acostumados à doçura melódica de Mozart, assustaram-se com as novidades orquestrais então apresentadas por Beethoven, acusando o maestro de criar música “barulhenta”.
Travei na elaboração deste artigo. Não conseguia descobrir como estabelecer o elo que me levaria a falar da mensagem subliminar do filme, que é o delicado substrato psicológico que levou o pianista de sucesso a se decidir a não mais dar recitais, tornando-se avesso a um público fiel e que o idolatrava. Fazendo um breve spoiler, revejo a cena em que o ator principal, diante de não mais do que dez pessoas e ao experimentar um piano numa loja, como que se apavora diante do teclado; congela, e não consegue tocar uma única nota. Aí, a atriz (jovem e linda), senta-se na banqueta ao lado dele e começa a batucar os acordes iniciais da Habanera da “Carmen” de Bizet. O pianista destrava e um hábil duo se segue, para encanto de todos.
Comecei travado diante do teclado do computador. Mas acabei descobrindo uma fórmula para destravar ao rever os versos da ópera de Bizet: – “L’amour est un oiseau rebelle / Que nul ne peut apprivoiser / E c’est bien en vain qu’on l’apelle / S’il lui convient de refuser” (“O amor é um pássaro rebelde / Que ninguém consegue aprisionar / E é em vão a ele apelar / Se a ele convém recusar-se”).
A formosa e jovem atriz coadjuvante é uma jornalista que desistiu de fazer carreira como pianista ao descobrir que não tinha talento para a música, preferindo tornar-se profissional da escrita. Ainda assim, nunca deixou de se deixar fascinar pela música, o que a levou a tentar entrevistar o velho pianista amargurado diante de sua recente viuvez. A história segue no rumo ditado pela Habanera: – “L’amour est um oiseau rebele…”
No seu premiado conto “O Trem de Maria”, que tem por cenário sua cidade de Peixe Boi/PA, meu sempre lembrado confrade Mauro Guilherme narra a história de um amor trágico, permeado pela adoração do personagem pelos trens que corriam na ferrovia que o Juarez Távora fez o desfavor de fechar.
Amor e seus percalços, amor/tragédia, amor/montanha russa com seus picos de puro êxtase e dor dilacerante; amor que se depara com dificuldades reais ou imaginárias; amor caleidoscópio de emoções, vinho e veneno, gozo e tortura, faz parte da teia da vida. E nem mesmo almas puras encarnadas em viventes de existência plácida como águas de igarapé – retrato fiel de uma pessoa que nem o Mauro, poeta e seresteiro que só bebia guaraná – estão livres desses amores descabelados, ao menos no esforço de fazer literatura. Ou de rabiscos paridos a fórceps que nem esta sonata desafinada a cuja coda no seu início me pareceu quase impossível de alcançar.