O acidente de carro que resultou na morte do ex-presidente Juscelino Kubitschek completa 50 anos em 2026 e, até hoje, há dúvidas sobre suas causas. As suspeitas de que o desastre tenha sido um atentado político, ocasionado por uma ação relacionada ao regime militar, persistiram ao longo das décadas, e, mais uma vez, estão colocando uma comissão federal diante da decisão de reabrir ou não a investigação do caso.
A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC), decidirá em reunião, no próximo mês, se o acidente será investigado novamente. A relatora Maria Cecília Adão contou ao Metrópoles que está analisando a documentação do caso.
“A solicitação de reabertura foi feita por um vereador de São Paulo. Tudo partiu da divergência entre o relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e da Comissão Estadual Rubens Paiva, de São Paulo. Estamos agora trabalhando na análise documental. A documentação é vasta e o tema é muito complexo, estamos nos debruçando com bastante atenção”, diz ela.
A reunião deverá ser agendada, segundo Maria Cecília, para a segunda quinzena de maio. Um dos pontos de partida da análise documental feita pela comissão é saber se, diante dos relatórios, laudos e investigações já realizados nesses quase 50 anos, ainda é possível contribuir de alguma forma e avançar na elucidação do caso.
A morte de JK
JK e o motorista Geraldo Ribeiro morreram no dia 22 de agosto de 1976, na Rodovia Presidente Dutra, no trajeto entre São Paulo e o Rio de Janeiro. Eles estavam no Opala, ano 1970, que, em aparente descontrole, ultrapassou pela direita um ônibus da Viação Cometa, seguiu reto na curva, invadindo a pista contrária, e bateu em um caminhão que vinha no sentido oposto.
A colisão ocorreu no atual quilômetro 328 da Dutra, no perímetro do município de Resende (RJ), sede da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman). À época, JK integrava a chamada Frente Ampla contra o regime militar que vigorava no Brasil e tentava viabilizar-se, politicamente, para disputar a Presidência da República, após ter os direitos políticos cassados pela ditadura por um período de 10 anos.
Perseguido, monitorado e considerado um dos principais adversários do regime, o ex-presidente morreu em circunstâncias consideradas suspeitas e que já foram investigadas por mais de um inquérito e procedimentos de diferentes Comissões da Verdade. As conclusões, no entanto, divergem entre si, sem sanar as dúvidas sobre se o que ocorreu, de fato, foi um acidente ou um atentado político.
Inquérito da época indiciou motorista do ônibus
O primeiro inquérito, instaurado à época do ocorrido, pela Polícia Civil em Resende (RJ), resultou na denúncia e acusação do motorista do ônibus da Viação Cometa, Josias Nunes de Oliveira, por homicídio culposo. A tese foi de que, em virtude do excesso de velocidade do ônibus, o Opala que levava JK teria colidido lateralmente com o veículo e, por isso, perdeu o controle, indo parar na pista contrária.
O motorista teve a vida revirada, após a acusação sofrida, mas acabou absolvido em dois momentos do processo na Justiça por falta de comprovação da tese defendida pelo Ministério Público. O caso foi concluído, sendo tratado como acidente e sem apresentar um culpado, apesar das suspeitas de uma possível ação criminosa.
Gilberto Ribeiro, que conduzia o Opala, dirigia para JK havia 36 anos. Experiente ao volante, ele era considerado cauteloso na estrada. A maneira como ele e o ex-presidente morreram gerou dúvidas imediatas nas pessoas mais próximas. A suspeita foi de que ele poderia ter se ferido, levado um tiro ou que teria ocorrido algo relacionado ao carro, como uma bomba ou uma possível sabotagem mecânica.
Vinte anos depois, em 1996, data da prescrição do caso, a investigação foi reaberta, com a exumação do corpo de Gilberto para descobrir se ele havia ou não sofrido algum ferimento que explicasse o descontrole na condução do Opala. Um fragmento metálico foi encontrado em um orifício no crânio do cadáver. Os laudos concluíram, no entanto, que não se tratava de bala ou munição, mas de um prego do caixão.
Divergências entre Comissões da Verdade
Em 2000, foi instituída na Câmara dos Deputados, em Brasília, uma Comissão Externa para investigar o caso. Composta por 22 parlamentares e presidida pelo então deputado federal Paulo Octávio, casado com uma neta de JK, a comissão ouviu os peritos da época do acidente, reavaliou laudos e concluiu que não houve atentado na morte do ex-presidente.
A Comissão Nacional da Verdade (CNV), instalada em 2012, também se debruçou sobre documentos e ouviu testemunhas. O relatório final, divulgado em 2014, reforçou a tese do acidente: “Não se pode dizer que o regime militar não quisesse matar JK, ao contrário. Mas, por força dos fatos e das provas existentes, não foi ele que o fez. O imponderável agiu antes, para gáudio dos torturadores e assassinos de plantão”.
Em São Paulo, duas comissões, uma municipal e outra estadual, também desenvolveram investigações próprias, no mesmo período da CNV. Diferentemente, no entanto, elas divergiram da comissão federal, alimentando a tese de atentado promovido pela ditadura.
“O presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira teve seu assassinato gestado, avisado, noticiado, executado e ocultado pela ditadura militar brasileira”, consta em parecer enviado ao Ministério Público Federal (MPF), em 2014, pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva, que é vinculada à Assembleia Legislativa de São Paulo.“Laudos imprestáveis”, concluiu perito
Entre 2013 e 2019, o MPF deflagrou um inquérito civil público para tentar avançar no caso. A investigação acabou sendo arquivada, diante da má conservação das provas, comprometidas pelo tempo, mas evidenciou erros e falhas cruciais nos laudos técnicos feitos à época do acidente, o que levantou suspeita de possível condução ou interferência na investigação.
O perito engenheiro, especializado em acidentes de trânsito, Sergio Ejzenberg auxiliou o MPF. Ele revisitou locais, documentos, testemunhos, refez cálculos e delimitou a dinâmica do trajeto do veículo, concluindo que não houve colisão entre o Opala de JK e o ônibus da Viação Cometa, e que o veículo que levava o ex-presidente fez mudança de rota brusca e fora do normal.
Por fim, o perito concluiu que os laudos da época da morte de JK são “imprestáveis”, do ponto de vista probatório, com erros aritméticos, conceituais e premissas que não condizem com a realidade. Como muitas das investigações feitas, até então, basearam-se nos documentos de 1976, a tese de acidente acabou reforçada, a exemplo do resultado obtido pela CNV, em 2014.
O MPF, no entanto, apesar do arquivamento, apresentou as seguintes conclusões, deixando o caso em aberto:
1: “O regime militar, de fato, adotava ações de inteligência para monitorar o ex-presidente JK, trocando inclusive informações sobre ameaças políticas aos regimes do Cone Sul com outros países da região.”
2: “Houve falhas severas nas investigações realizadas pelo Estado brasileiro, as quais levaram ao processamento indevido de cidadão inocente, qual seja, o motorista Josias Oliveira” (condutor do ônibus da Viação Cometa e acusado em 1976).
3: “Diante das falhas nas investigações realizadas, a verdade dos fatos é impossível de ser alcançada com as provas atualmente existentes, porém o presente inquérito civil traz conclusões o mais fidedignas possível aos elementos probatórios que se pôde angariar.”
4: “O motorista Josias Oliveira não causou o acidente investigado.”
5: “Não é possível comprovar, no momento atual, elementos suficientes de autoria e materialidade de um crime de homicídio contra JK e Geraldo Ribeiro.”
Em maio, mais uma vez, as dúvidas estarão colocadas na mesa, resta saber se há algum caminho que ainda não tenha sido tentado para elucidá-las.
Fonte: Metrópoles