Poucos pensadores brasileiros traduziram com tanta lucidez e coragem o papel do intelectual na sociedade quanto Milton Santos. Geógrafo, professor e pensador radicalmente comprometido com a justiça social, ele via o intelectual como uma figura destinada, antes de tudo, a criar o desconforto. Em uma célebre entrevista ao programa Roda Viva, em 1997, declarou que o intelectual existe para incomodar, provocar, interrogar a ordem estabelecida. Para Santos, pensar o Brasil exige mais do que repetir diagnósticos oficiais ou se render à neutralidade fingida do saber técnico: exige coragem para ser voz dissonante, mesmo que em solidão. Essa função crítica não é um luxo acadêmico, mas uma urgência histórica num país marcado pela desigualdade estrutural, pelo racismo velado e pela violência simbólica do discurso dominante.
Milton Santos denunciava o processo de domesticação dos intelectuais, muitas vezes cooptados por instituições, governos ou pela lógica do mercado. Para ele, o Brasil carece de “verdadeiros intelectuais” — aqueles que não hesitam em afrontar os consensos fabricados pela mídia, pelas elites econômicas e pelos aparelhos ideológicos do Estado. A esses, caberia exercer uma função profética: não no sentido religioso, mas como aqueles que anunciam o que está por vir ao mesmo tempo em que denunciam os mecanismos que impedem o novo de nascer. Ser intelectual, em sua visão, não é estar acima do povo, mas em profunda escuta e aliança com os que sofrem, os que lutam e os que sonham com um país mais justo.
Nesse sentido, a atuação intelectual não pode se restringir às universidades ou aos espaços de prestígio simbólico. Santos insistia na inserção social do saber. Seu pensamento convoca o intelectual a descer das cátedras e das colunas de opinião para dialogar com as ruas, os movimentos sociais, os trabalhadores invisíveis. O Brasil profundo, aquele fora dos holofotes, precisa ser pensado por quem se dispõe a romper com as estruturas que o mantém à margem. O intelectual crítico, para Milton Santos, é aquele que não se acomoda em diagnósticos pessimistas ou cínicos: ele reinventa o olhar, propõe novas geografias da esperança, e aponta caminhos onde o sistema insiste em enxergar impasses.
Em tempos de retrocesso democrático, banalização da violência e esvaziamento do debate público, o chamado de Milton Santos ressoa com ainda mais força. O Brasil precisa — mais do que nunca — de intelectuais que não temam o dissenso, que rejeitem a cumplicidade com os poderes instituídos, e que se comprometam com a verdade dos fatos, mesmo que esta incomode. A missão do intelectual, como propunha Santos, é ser construtor de um pensamento insubmisso, indisciplinado e solidário. Em sua herança crítica está a esperança de que pensar o Brasil, com honestidade e coragem, ainda possa ser um ato de transformação. Porque, como ele dizia, “a realidade só é transformável quando é conhecida — e enfrentada”.
Milton Santos e o Dever Crítico do Intelectual no Brasil
