Já vivi 150 anos neste mundo
Vi quase tudo
O que Deus o diabo tinham
Para apresentar na face da terra.
Já não me surpreendo mais.
É que vivi tanto através das vidas alheias,
Enxerguei pelos seus olhos
Senti por suas peles,
Aprendi muito através da profunda
E intensa relação médico-paciente.
Não há como ficar imune
Nunca fui vacinado.
Cada relato seu era como
uma viagem pelo desconhecido.
É um aprendizado
Que não se adquiri no banco da faculdade
De medicina.
Ao longo de muitos anos,
sem exagero,
Tendo atendido dezenas de milhares de pacientes,
Não há como não absorver
ou não extrair suas vivências e experiências
como se fossem minhas
e a partir daí,
De tanto sofrer as dores alheias
Desde então mudei…
Aprendi o que ter a ideia da dor de perder um filho, a esposa, a mãe, a casa, o emprego, ter fome sem ter o que comer, através de sua dor excruciante, sem pessoalmente nunca tê-los perdido ou sentido.
Com o tempo, meu consultório tornou-se uma espécie de ORÁCULO DE DELPHOS aonde os peregrinos, atravessando a Ásia Menor em direção à Grécia, se encaminhavam em busca de respostas para suas agruras. Perguntam-me depois de examinados: “e agora, doutor? O meu mal tem cura?” Ao contrário do ORÁCULO que era seco e pragmático em suas respostas, limitando-se a SIM e NÃO, além dos medicamentos, cabe a mim dar-lhe esperanças de cura ou acolhimento e conforto,
mesmo diante do prognóstico reservado, quando aparentemente não há mais nada a fazer.
Um dia, ao chegar em cada muito triste por antever que iria perder um paciente para uma doença consumptiva depois de fazer de tudo que a medicina poderia oferecer, exclamei contrariado: “não tem mais jeito!” Ao que minha mulher na hora da janta, disse: “tem jeito, sim”. “Como?”, perguntei descrente. “Àquele que crê em Deus, há a vida eterna”. Comi pensativo. Então, a partir daí passei tornei-me mais reflexivo.
Assim nesse autoaprendizado provocado por verdadeiras lições de vida de terceiros, somadas às minhas agruras, que não foram poucas, tudo para mim passou a ter sentido.
A verdade, finalmente, aparece para o ser humano, quando ele está sozinho e despido diante de si mesmo, vagando perdido com sua dor, que não pode ser passada adiante. Nessa hora, quando está fragilizado e vulnerável, despojado de tudo que é mundano como o orgulho, a cobiça, o ódio e a vaidade, por exemplo, quando torna-se duramente incapacitado fisicamente ou portando séria doença crônico-denerativa ou ainda perante a inexorabilidade da morte, quando o indivíduo terá um longo tempo para refletir sobre a sua condição humana, nessa hora vi acontecer milagres. Testemunhei a autocura. Vi ateus e agnósticos pedirem perdão a Deus pelo seus pecados. Testemunhei o renascimento de um novo homem. Eu fui um deles.
Amém!
Paulo Rebelo, médico, escritor e poeta.
P.S. A ideia central deste texto já existia há muitos anos, mas não sabia por onde começar. Jazia silenciosamente no meu peito. Foi a partir de uma agradável conversa filosófica, hoje, com meu grande amigo Valdenilson Monteiro, que este me estimulou a escrever o texto retrocitado, a quem agradeço penhoradamente e dedico como prova de nossa amizade.