Durante boa parte da história política brasileira, divergências ideológicas sempre existiram. Eram acaloradas, por vezes agressivas, mas permaneciam dentro de um campo reconhecido de disputa: “ideias contra ideias”. No entanto, a última década marcou uma mudança preocupante. A polarização política deixou de ser predominantemente ideológica e passou a assumir contornos viscerais. Hoje, não se trata apenas de discordar do que o outro pensa; trata-se de deslegitimar o outro como pessoa, transformando adversários em inimigos.
Antes de continuar, é importante fazer a distinção dos termos “Adversário” e “Inimigo”. Enquanto a ideia de adversário está ligada a uma oposição não hostil, o inimigo é marcado pela hostilidade e pelo sentimento de ódio ou pelo desejo de prejudicar o outro. Exemplos que facilitam a compreensão são, no primeiro caso, dois times de futebol que competem em um torneio, embora o objetivo seja derrotar o outro, não significa que desejam causar mal, subsiste o respeito, ainda que oponentes. Já, no segundo caso, imagine um grupo terrorista que considera determinado regime politico como inimigo, ele buscará a destruição total e não apenas a deposição.
Continuando. Essa transformação não ocorreu de forma abrupta. Foi um processo alimentado por crises econômicas, escândalos de corrupção, redes sociais e uma crescente incapacidade das lideranças políticas de construir pontes. Como observou o filósofo político Norberto Bobbio, em sua obra A Era dos Direitos: “a democracia vive do conflito, mas um conflito regulado”. No Brasil atual, a regulação desse conflito — representada pelo respeito às instituições e pela preservação de espaços de diálogo — está sob ataque.
Hoje, com figuras como Lula e Bolsonaro, o discurso público se fragmentou em narrativas que demonizam o “outro lado”. E, ocupando papel catalisador desse cenário, as redes sociais, antes, utilizada como espaço para a troca de ideias tornou-se um campo de batalha simbólico, onde cada publicação é uma arma e cada curtida, um ato de posicionamento.
Estudos recentes da área de psicologia política mostram que, em contextos de alta polarização, as pessoas tendem a consumir apenas informações que confirmam suas crenças, fenômeno conhecido como “viés de confirmação”. Isso ajuda a cria bolhas informacionais, nas quais o opositor é constantemente retratado como uma ameaça existencial.
George Orwell, em seu clássico 1984, alertou: “O inimigo do momento sempre representou o mal absoluto, e era necessário que assim fosse”. Essa lógica, transposta para a política brasileira, nos mostra como a imagem do “outro” é distorcida até que ele não seja mais um cidadão com opiniões divergentes, mas sim um símbolo do mal a ser combatido. Esse processo desumaniza o debate, minando qualquer possibilidade de consenso.
A visceralidade da polarização não se manifesta apenas no discurso. Ela transborda para o comportamento social. Famílias se dividem, amizades são rompidas e até relações profissionais sofrem com a incapacidade de separar a esfera política da convivência cotidiana. O sociólogo Zygmunt Bauman, ao falar sobre a fragilidade dos vínculos humanos na modernidade líquida, afirmou: “Quando não há diálogo, resta apenas o confronto”. E é exatamente isso que vemos: uma sociedade que, incapaz de conversar, recorre ao embate como regra.
O perigo desse cenário vai além da esfera emocional. Quando a política se torna uma guerra de identidades, a governabilidade fica comprometida. A busca por soluções reais para problemas concretos cede lugar à necessidade de derrotar o adversário. Isso paralisa o processo democrático e abre espaço para discursos autoritários, que se apresentam como “soluções rápidas” para um país “em crise permanente”.
Superar a polarização visceral não significa eliminar o conflito político — até porque, como lembra Bobbio, ele é parte essencial da democracia. Significa, sim, resgatar a capacidade de reconhecer no outro não um inimigo, mas um compatriota com quem se compartilha um destino comum. Significa compreender que, se as divergências são inevitáveis, o respeito é inegociável.
O filósofo francês Voltaire, atribuindo-se a célebre frase que sintetiza esse espírito, teria dito: “Posso não concordar com o que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo”. Esse princípio, mais do que uma bela formulação retórica, é o alicerce que sustenta qualquer sociedade democrática madura.
No Amapá, a polarização visceral que marca a política brasileira também encontra ecos, porém, com menos tensão. E isso se deve a própria dinâmica política que é frequentemente moldada pelo momento ou pelo grupo político que detém o poder, sem um enraizamento ideológico rígido. Essa fluidez permite que atores políticos transitem por diferentes espectros ideológicos conforme as necessidades e alianças do contexto, priorizando pragmatismo em vez de confrontos doutrinários.
Assim, o Amapá revela um ambiente onde as disputas, embora existentes, tendem a ser menos marcadas por hostilidades irreconciliáveis, oferecendo espaço para negociações e acordos que, mesmo que oportunistas, suavizam os embates e favorecem uma convivência política mais flexível.
Por fim, o Brasil precisa reencontrar o caminho do diálogo. Não será fácil, nem rápido. Mas é um esforço urgente. O país não pode se dar ao luxo de viver eternamente em campanha eleitoral. É hora de transformar inimigos de volta em adversários — e adversários, novamente, em cidadãos.
A Polarização Visceral na Política Brasileira: De Adversários a Inimigos
