Inadimplentes estão cerca de 30% das famílias brasileiras. É o maior percentual, desde o ano de 2.010, segundo Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), feita pela Confederação Nacional do Comércio de Bens Serviços e Turismo (CNC). Como a pesquisa começou naquele ano, este é o pior resultado histórico!
Metade está inadimplentes há mais de 90 dias. Este acúmulo de valores vencidos vira uma bola de neve, que aumenta a cada dia, revelando a crescente piora do quadro financeiro e da capacidade de pagamento da população, com reflexos nos juros elevados e abalando a concessão de crédito bancário.
A indústria e o comércio são atingidos. O comércio varejista logo sente o efeito do endividamento das famílias, com a desaceleração nas vendas e a necessidade de realizar promoções e outras medidas para manter o fluxo de caixa. Ao vender mais barato, para honrar salários de funcionários, pagamento de impostos e taxas e fazer o giro do negócio, diminuem os lucros. Consequentemente, menos se comprará ou se fará investimentos, o que, em efeito cascata, vai abalando as redes sistêmicas de produção e comércio. Os prazos diminuem na concessão de crédito. Com menos parcelas a pagar, o valor unitário aumenta. Isso também dificulta novas aquisições. Outra bola de neve começa a se formar e se irradia.
Como se vê, numa crise de inadimplência, todos sentem algum efeito. O contexto ultrapassa o âmbito das famílias, inadimplentes ou não, passando a ser um problema para os governos e para o país. É um problema público!
Não se trata apenas de se renegociar dívidas para se poder limpar o nome e voltar a consumir. A questão envolve a estabilidade do sistema social e de justiça, pois necessitamos de um ambiente harmônico e equilibrado para produzir, com redução do chamado custo Brasil, diminuição do endividamento público e mais empregos gerados. É através do trabalho que o país prospera, com a soma de potencialidades individuais e da economia de cada família formando a sólida base da economia nacional.
Não há como se dividir um bolo sem que este possa ser retroalimentado. Não existe fórmula mágica que seja capaz de dividir eternamente um pão e satisfazer a todos. É preciso que haja mais fermento, mais farinha, mais produção.
Ora, já temos 7,2 milhões de empresas que não conseguem honrar os seus compromissos e dívidas. O número corresponde a 31% da rede de negócios no Brasil. Os pedidos de recuperação judicial e de falências aumentam. O agronegócio, que tem segurado o PIB nacional nos últimos anos, também sofre. Produtores gaúchos enfrentam significativa crise. Curioso notar – indesejável coincidência – que o percentual de inadimplência equivale entre as empresas e as famílias: um terço!
Há um ponto de não retorno, de saturação e de comprometimento da ordem e da lógica de qualquer sistema complexo. Este evento talvez ocorra com o ápice do risco de crédito, de um volume de falências mais elevado e do maior abalo na confiança.
Recessão não se deseja. Coisas afins também não. A economia funcionando bem significa contenção de insatisfações populares latentes. Quando a coisa escala, é natural que as pessoas se movimentem e isso nem sempre acaba bem, como ocorreu em França, no episódio da Revolução Francesa, que, dentre outras coisas, fez rolar cabeças na guilhotina.
Roosevelt evitou o mal maior nos Estados Unidos, em razão da crise de 1.929. Pelo New Deal, conseguiu segurar a barra da economia e da política, alimentar pessoas, gerar trabalho, segurar as empresas produzindo e recuperar a economia, regulamentar bancos e reformar e consolidar o sistema para se evitar novas rupturas no futuro, criar obras públicas e sistemas de seguridade social.
Estamos, contudo, numa encruzilhada iminente. No ano de 2.027 teremos o pico do endividamento público no Brasil, no percentual de 81,8%, por previsão do Tesouro Nacional. Isso significará déficit fiscal nos 4 anos do atual governo. Teremos, adiante, portanto, tempos de comprometimento na capacidade de investimentos e crescimento. Ora, a recessão está no contexto da diminuição da atividade econômica, na queda do PIB, na redução do consumo, do emprego e das ofertas de trabalho e na limitação do crédito e dos investimentos. Esse contexto – indesejado, sempre – de retração econômica não é questão de contas, cálculos ou dinheiro, mas de justiça social, de soberania alimentar, de cuidado com os mais carentes, de respeito aos direitos sociais e às famílias.
Temos tido ciclo razoavelmente estável nos países ocidentais, embora com reformas administrativas ou previdenciárias ocasionais. Não tivemos revoluções recentes ou abalos significativos na ordem. Contudo, a França está enfrentando grave crise e, diante de cortes anunciados pelo governo e por mais investimentos no serviço público, grita: “- Vamos bloquear tudo!” O Primeiro-Ministro francês, Lecornu, renunciou, antes mesmo de completar um mês no cargo. Falamos nisso há dias. O detalhe relevante é que os líderes sindicais franceses defendem mais investimentos nos serviços públicos, conscientes de que, em meio às crises econômicas, os mais necessitados são os que mais sofrem.
Ora, aqui e no ano de 2.027, com o vaticinado grave comprometimento do PIB pelo endividamento público, é previsível que não haverá margem para discricionárias manobras governamentais. O engessamento será potencialmente capaz de contaminar o sistema. Faltando estabilidade, emprego e comida no prato das famílias e com o Estado tão abalado, recessão não será algo extraterreno. Com redução da capacidade de pagamento, as famílias mais necessitarão dos serviços públicos e dos servidores públicos, no sistema de saúde, no sistema de justiça – notadamente no acesso, via Defensoria Pública, sem pagamento de honorários e custas judiciais – e nos sistemas de educação e transporte.
Toda atenção é pouca e parece que os sindicatos franceses já perceberam isso e, por este motivo, fazem as mobilizações que têm ocorrido e pugnam por mais investimentos. Aqui, na contramão e com grande crise a ocorrer a partir de 2.027, não se pode desconstruir o serviço público, que precisará ser fortalecido, até como cláusula de contenção para que o desespero não se instale e abale a ordem e o progresso: investir na segurança pública ante o possível aumento da criminalidade, investir no acesso à justiça – já que o endividamento das famílias e empresas deverá causar mais despejos, mais divórcios, mais problemas possessórios, mais conflitos de vizinhança, mais processos criminais, etc. – investir na saúde pública (inclusive porque famílias deixarão de comprar os custosos remédios, ocasionando o agravamento de doenças), etc.
Sem que cuidemos das redes de prevenção, poderá ser pavoroso o período a se inaugurar em 2.027: um problemão para o país, desde já.