Canto dos Castanhais, Joãosinho Gomes
Escrevo com a voz embargada de quem nasceu do barro do rio e do silêncio da mata. Não falo da Amazônia como paisagem exótica nem como ativo econômico: escrevo como quem vela um parente ferido. Porque, para nós, a floresta é parente. E o que fazem com ela não é acidente: é projeto.
A Amazônia foi condenada, desde cedo, a existir como espólio. Espólio de impérios antigos e capitais modernos; de Estados que preferem mapas a pessoas. A floresta vira cifra, estatística, commodity; o povo vira sobra. Georgi Plekhánov, ao afirmar que “os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem; fazem-na sob condições dadas”, ajuda a compreender o drama amazônico: as condições aqui sempre foram impostas à força — a violência como método, a exploração como regra, o silêncio como política.
Chamam de desenvolvimento aquilo que chega com motosserra, mercúrio e bala. Chamam de integração o que, na prática, é despejo histórico. Povos indígenas expulsos como se fossem intrusos na própria origem. Ribeirinhos empurrados para as margens da margem. Castanheiros presos a dívidas eternas, trabalhando sob o sol como se o tempo ainda fosse cativeiro. “Condição análoga à escravidão” é o nome jurídico; na vida real, é a velha servidão com roupa nova.
Quando esses corpos ousam resistir, o sistema reage como sempre reagiu: criminaliza, ameaça, mata. A floresta conhece os nomes dos seus mortos, mesmo quando os jornais fingem não saber. Aqui, a bala costuma chegar antes da escola, e o trator antes do direito.
Luiz Carlos Prestes advertiu com clareza histórica: “A libertação nacional só pode ser obra do próprio povo.” A Amazônia desmente, todos os dias, a retórica de um país que se diz soberano enquanto mantém parte de seu povo sob exploração colonial interna. O Estado aparece para garantir a cerca, nunca para garantir a vida. Regula o saque, mas não o interrompe. A legalidade vira verniz fino sobre a barbárie grossa.
Darcy Ribeiro enxergou o Brasil com a lucidez de quem ama sem ilusões. Quando disse que “o Brasil tem um enorme passado pela frente”, parecia anunciar este presente contínuo de devastação. Aqui, o fracasso do projeto nacional tem cheiro de fumaça, gosto de rio contaminado e som de árvore caindo. Uma civilização inteira da floresta — com seus saberes, suas cosmologias, sua ética do cuidado — é tratada como atraso, como erro histórico a ser corrigido pela força do mercado.
Há algo de obscenamente cínico em chamar isso de progresso. Progresso para quem nunca sujou os pés no barranco do rio. Para quem olha a Amazônia de helicóptero, de planilha, de longe. Para o povo da floresta, o que chega é exclusão, luto, medo. O futuro lhes é sempre prometido, nunca entregue.
Este artigo é um lamento — um lamento raivoso, à maneira das canções desesperadas de Neruda, quando o amor vira ausência e ferida aberta. Choro a floresta como se chora um corpo estendido no chão, ainda quente, ainda respirando. Cada árvore tombada é um verso interrompido; cada povo expulso, uma canção silenciada.
Não escrevo para pedir piedade. Escrevo para acusar. Não é destino: é escolha. Não é atraso: é projeto. Um projeto que transforma vida em lucro e chama isso de racionalidade.
Enquanto a Amazônia for tratada como coisa e seu povo como obstáculo, não haverá redenção possível. Haverá apenas a repetição do crime, como uma canção triste cantada à exaustão.
Que fique registrado, em tom alto e claro: a floresta não esquece. O rio não esquece. O povo da floresta, mesmo ferido, não esquece. E toda história escrita com sangue, cedo ou tarde, cobra leitura em voz alta.

