Tanto quanto Lula (PT) ou Bolsonaro (PL), Juscelino Kubitscheck era um homem do povo. Veio do Brasil profundo, interiorano, cercado por aquela muralha de montanhas que marca a silhueta das Minas Gerais. Nasceu de uma família pobre de Diamantina. Seu pai morreu de tuberculose quando ele tinha 3 anos. Foi criado pela mãe, dona Júlia, professora primária. Foi telegrafista, médico, deputado, prefeito, governador e presidente da República. Enfrentou duas revoltas armadas: Jacareacanga, em fevereiro de 1956, e Aragarças, em dezembro de 1959. Nas duas vezes anistiou os rebeldes.
O Brasil deixado por JK foi completamente diferente daquele por ele recebido, o Brasil de Getúlio Vargas que cumpriu a promessa de só sair morto da Presidência. Pela 1ª vez, depois uma década, o líder comunista Luiz Carlos Prestes, seu adversário e senador cassado em 1946, podia andar na rua. O rancor, o ódio e a intolerância que prevaleceram durante décadas, tanto na República Velha como depois da Revolução de 1930 com Vargas, foram dissipados.
Juscelino, como registra Tendler, tomou posse desarmado. Sua atitude não era a de alguém indo para a guerra, mas rumo a um encontro de paz. O poder é atitude e a dele foi a de ir em frente, ao invés de remoer o passado. O exemplo de Juscelino segue vivo, a quem possa interessar.
Depois uma Presidência excepcional, sofreu todo tipo de humilhação durante o governo militar. Foi preso, chamado de ladrão, corrupto, viu sua família ameaçada e acabou obrigado a sair do Brasil. Nada foi provado contra ele. Até hoje JK é lembrado como o presidente da tolerância, da prosperidade, do desenvolvimento e da ousadia.
Lula acaba de vencer uma eleição num país tão dividido quanto o de JK. Terá de chegar manso, sem marola, se quiser cumprir a promessa de fazer um mandato muito melhor do que o anterior. No seu discurso de 4ª feira (9.nov.2022), na sede do governo de transição, Lula pregou a pacificação, a tolerância, mas sua atitude não era a de quem ia ao encontro da paz.
Não ameaçou nem xingou, mas deixou claro que não dará trégua a Bolsonaro e seus aliados. Lula tem a simpatia do Supremo. Durante a eleição, alguns ministros não esconderam sua preferência por ele. Ali não há paz a ser proposta, porque não há clima de guerra. O único adversário é Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, que fez campanha para Bolsonaro. Lira tem suas rusgas regionais com os Calheiros, mas guarda boa dose de pragmatismo no sangue e soube demarcar seu território. Negociar uma paz –ou uma trégua– com Lira não é um problema. Muito menos com os 11 ministros do Supremo.
O pacto de paz que Lula tem de construir é com a outra metade do povo brasileiro que não votou nele e o rejeita. A maioria desses eleitores não é bolsonarista raiz: é antipetista mesmo. Assim como a maioria dos que votaram em Lula são antibolsonaro. Este sentimento não acabou com a eleição. Permanece e não se dissipará facilmente.
Na visão de Lula, o Brasil está destruído, virou um inferno. Mas os números mostram o contrário. Temos uma inflação que, diferentemente da dos nossos vizinhos, não disparou e está menor que a dos Estados Unidos. O desemprego em queda depois da pandemia desajustar a economia, exportações crescendo, agronegócio bombando e a maior redução da miséria em toda América Latina, de acordo com o Banco Mundial. Lula vai pegar um país arrumado ou nos eixos, para dizer o mínimo, como pegou em 2002. Será sua 2ª boa herança maldita.
Os que rejeitaram o PT votando em Bolsonaro não desejavam mudar o rumo do país. Entre eles não estavam só a classe média e uma parte dos mais ricos. Muito pobres votaram contra o PT, milhões deles. Portanto, não adianta pedir para que os 58 milhões de brasileiros eleitores de Bolsonaro aprendam a respeitar quem tem opinião diferente, sem antes dar o 1º passo adotando a atitude de oferecer a mão à conciliação. Não haverá pacificação se Lula e o PT insistirem no “eu e eles” que marcou os governos petistas de 2003 a 2016. A rejeição seguirá forte, ainda que reprimida pela força, censura e cancelamento.
Será preciso mais do que belas palavras. Será preciso que Lula esteja verdadeiramente aberto para o diálogo com aqueles que o rejeitam, mesmo sabendo que continuarão rejeitando-o e que a paz é, antes de tudo, disposição para conviver sem retaliar. Abrir canais, demonstrar interesse em negociar, conversar, tolerar, dar um passo adiante. Este é o caminho.
JK deixou uma grande lição ao ser capaz de anistiar militares que pegaram em armas contra ele, mesmo sabendo ser este um remédio inócuo para a rejeição, porém eficaz para a convivência entre opostos e a saúde da democracia.