Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.
Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão – felizes! – num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.
Morrer sem deixar porventura uma alma errante…
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?
Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento.
Em nenhuma epiderme.
Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
perguntem: “Quem foi?…”
Morrer mais completamente ainda,
– Sem deixar sequer esse nome”.
Manuel Bandeira
Dia desses, um novo amigo de acarajé, que pareceu velho amigo de alma, trouxe aquele poema à mesa. Foi entre uma linha e outra, sentindo o sentir de Manuel, que rememorei épocas da vida quando aquela ausência típica da morte, nas estrofes, atacava-me em palpitações o coração.
Nunca, alguém figurou tão despretensiosamente meus jovens anos de morte em vida, quanto Manuel. Morte sem convenção. Morte por ausência. Ausência de sentir, ausência de agir, ausência de vontade. Ausência mesmo de sentidos.
Que morte? Morte assumida como corte, rompimento, afastamento de horizontes e, também, propósito, na vida. O despojo da carne, da máscara de cera, do saudoso luto do qual todos pareciam conformar e se preparar, a mim nada trazia de força, menos ainda, de direção.
Morte absoluta de alma em minha vida eu já percebia, mas o que diabos era aquilo -alma- que desqualificava meu corpo? Se fosse o que eu concebia, então, morreria sem deixar por ventura uma alma errante…
A caminho do céu? Outra invenção à ausência. De que forma alcançaria o status de alma andante a caminho do céu? De porta em porta. De doutrina em doutrina, talvez, algo surgiria e confortaria meus anesios e gritos silenciados a Deus, aquele que tudo vê, sabe e escolhe.
Desafortunada pelas inseguranças da alma, que me abandonou tão despreparada, para morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra. De agigantada solidão, nem caberia insistir nessa existência. A união com ela, entretanto, poderia elevar-me a qualquer condição de completude. Isso: completude.
Completude: a lembrança de uma sombra, em um coração, em um pensamento em uma epiderme, ainda que fosse em mim. Qualquer garantia, que me trouxesse essa religação, permitiria suportar mais essa jornada, permitiria plenitude.
Suprindo a fase do morrer, tão inerentes ao eu, outros inputs teria de dar conta, como que um dia, ao lerem o meu nome num papel, perguntariam: “Quem foi?…”
Ausência, novamente, em mim.
Morrer mais completamente ainda – sem deixar sequer esse nome- carecia de minha aceitação e do meu acolhimento. Fui, daí, trabalhar esse binômio. Conduzi como quem aprende o respirar: intuitivo, desastroso e sem fim.
A despeito do fator motor da respiração, nele, cabe tanto poder e crescimento que pouco vislumbraria, antes. Sem tempo, sem concepção pré formada e sem expectativa de acerto, detive na essência da vida: respirar.
De fatal contraposição à morte, dei-me início à vida. Sem forma, nem tempo, cedi à abertura dissociada e, espantada, confundi, livremente, ambas – vida e morte – e, assim, vivi…
Aqui, jaz uma alusão ao luto de Manuel.