Os donos do poder não são governantes ou representantes de instituições governamentais. O Poeta Manuel Bandeira abstratamente a eles se referiu, no poema Vou-me embora pra Pasárgada, ao dizer que lá seria “amigo do rei”. As sombras do poder sempre existiram e Getúlio Vargas a elas se referiu na Carta-Testamento e, na Carta-Renúncia, Jânio Quadros as chamou de “forças terríveis” que “intrigam ou infamam, até com a desculpa de colaboração”.
Se a verdade por vezes é óbvia demais, os contos de fadas são mais sedutores e ainda têm final feliz. Mesmo já adultos, parece que essa ideia nos persegue e, não raro, seguimos o canto da sereia, acreditando no desfecho ideal.
Há ciência por trás das palavras, dos gestos e dos olhares. Churchill é bom exemplo, pois sabia o poder de cada palavra e explorava ao máximo esse potencial – e ganhou Prêmio Nobel de Literatura.
Os donos do poder não agem de improviso. Sabem exatamente o que, como e quando agir. Não é em vão que sussurram como a brisa ou bradam como o furacão. Como no Teatro de Marionetes, cada movimento é estudado, para produzir encantamento.
Sem perceber, nossos pés são retirados da realidade cinzenta e passamos a flutuar na idílica mensagem, simbologia que foi bem explorada no filme O Mágico de Oz, que se inicia em tom sépia, até que os passos conduzem Dorothy às cores e ao caminho feito com tijolos amarelos, no enredo fantasioso.
Por vezes seguimos palavras convidativas, sejam conspiratórias ou utópicas e, quando nos deparamos com a realidade, não é incomum que já estejamos tão comprometidos que não possamos mais voltar.
Noutros momentos, podemos nos sentires sozinhos e isolados em meio ao cenário dantesco, seco de bons sentidos e sem destino interessante, carregando a solitária e surpreendente dor de quem percebe que, para o cadafalso, caminhou com convicção e autônoma vontade.
Em 1986, em Ilusões Biográficas, o filósofo francês Pierre Bourdieu nos brindou com a expressão “criação artificial de sentidos”, que ainda ecoa, nos forçando a reflexões mais amplas do que nosso senso comum talvez desejasse, mesmo que não pensemos nisso.
Soa como crítica à nossa tendência em criar conexões entre palavras e acontecimentos, para lhes dar coerência e sentido lógicos e plausíveis, quando em verdade não o teriam.
Daí a ideia da criação artificial dos sentidos, fruto do contexto e da força de instituições que alimentam as tendências como se elas, por si só, fossem a conclusão.
Por isso o título deste artigo não fala em “criação de sentido artificial” e sim em “criação artificial de sentido”.
Como o nosso consciente precisa dar significado às nossas escolhas, participamos ativamente do processo da criação artificial de sentido. Fazemos o que queremos, quando queremos e como queremos. Somos livres para agir, pensar e falar, embora sejamos mais impulsivos do que o aviso da placa colocada no cruzamento da linha férrea, que nos adverte, dizendo “pare, olhe, escute”.
Inadvertidamente, costumamos cruzar a linha férrea da política sem dar atenção à lógica dos sentidos e mais seguindo a psicologia das massas.
A liberdade de escolha e o livre arbítrio são maravilhosos instrumentos, mas também colocam os nossos destinos em nossas mãos e, com isso, não podemos culpar a ninguém, o que não nos agrada sempre. Em sociedade, essa liberdade não deve ser anárquica, mas responsável. Por vezes somos como Ícaro, dispensando os paternais conselhos da razão, como fez Dédalo, ao aconselhá-lo a não voar tão baixo ou alto, para não comprometer as potencialidades das asas de cera, pelo contato com a água do mar ou pelo calor solar.
Vivemos época curiosa, com as massas se movimentando como tal – mesmo virtualmente – e esmagando a individualidade. Talvez, como boa metáfora, possamos nos lembrar de que o estouro da boiada arrasa tudo pela frente. Corremos junto ou somos atropelados.
Parece que as nossas ações perderam o sentido da vontade individual para se encaixar em contexto onde impere a aprovação dos demais. Estamos ficando dependentes das curtidas e respostas positivas, nas redes sociais, seja para o nosso ego ou para dar algum sentido ao vazio das nossas vidas. Com o universo virtual paralelo, que se aprimora, talvez deixemos de ser sujeitos de direitos e deveres para ser fruto de algoritmos que nos definam… Nesse mundo virtual é traumatizante o cancelamento, pelo fato em si e pela dificuldade ou impossibilidade de defesa!
Na vida política o cancelamento se daria por meio do voto, instrumento hábil a confirmar o desejo mais individual do cidadão, no silêncio e segurança da cabine de votação.
Contudo, no debate sobre a criação artificial de um sentido, temos visto manifestações sobre o voto impresso, confundindo este instrumento com a mera impressão do comprovante de votação, embora não tenha ouvido falar que a eleição por urna eletrônica, aqui, decorra da Lei 13.165/2015, votada no Congresso Nacional e sancionada por Dilma Rousseff em 29 de setembro daquele ano, com veto parcial (Mensagem nº 358, da mesma data) que, posteriormente, foi derrubado pelo Congresso Nacional, ensejando nova sanção por Dilma Rousseff, em 25 de novembro de 2015, prevendo a impressão do comprovante de votação.
Isso mesmo: a lei que introduziu a votação eletrônica modificou a Lei 9504/97 e, dentre outras disposições, lhe introduziu o Art. 59-A, caput e parágrafo, prevendo que “no processo de votação eletrônica, a urna imprimirá o registro de cada voto […]” e fixando que “o processo de votação não será concluído até que o eleitor confirme a correspondência entre o teor de seu voto e o registro impresso e exibido pela urna eletrônica”.
Contudo, esse dispositivo legal foi considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) nº 5889.
A decisão da Suprema Corte modificou a intenção do legislador, expressada naquela lei e constituída a partir do embrião, representado pelo Projeto de Lei 5735/2013, de autoria do Deputado Ilário Marques, do PT do Ceará (site da Câmara dos Deputados – inteiro teor do PL), emendado e alterado pelo Parlamento, após rica tramitação, até que chegasse à redação final.
Concluir sem avaliar essa causalidade pode comprometer a nossa opinião ou nos fazer expressar ideia que seja refém da necessidade de criação artificial de um sentido – para coisas que pareçam não fazer sentido algum.
Como foi afetada a intenção dos legisladores no Congresso Nacional, deixamos de ter meio de conferência da decisão que proclamar vencedores e vencidos, no processo legislativo que introduziu a eleição por urnas eletrônicas e que previa o registro impresso do voto, para conferência em caso de impugnações.
No futebol temos o VAR para permitir a conferência de certas situações. As eleições deste ano novamente não ensejarão conferência e recurso contra a decisão que proclamar o vencedor (qualquer um!), por ser crível que dependeriam de meio autônomo de conferência – como previa o legislador, como vimos.
Isso não tem correlação com o fato de serem auditáveis as urnas ou sobre aspectos técnicos dos programas e equipamentos. Estes existem e existiriam pela natureza do processo eletrônico, estando presentes mesmo que estivesse vigendo aquele artigo da lei votada pelo Congresso Nacional e sancionada pela Presidência da República.
Por fim, é bom relembrar que a recontagem ou conferência de votos definiu as eleições nos EUA, em 2020 (vencida por Joe Biden, após o ocorrido na Geórgia) e em 2000 (quando George Bush foi declarado vencedor, após batalha judicial e decisão da Suprema Corte dos EUA). Aqui, as campanhas nem começaram e o clima já está quente, como demonstram pesquisas e conversas… o tempo voa e logo teremos a proclamação do inquestionável resultado.