Quanto mais próximos ao problema, pior.
A percepção fica limitada pela ferida que sangra, pela decepção que fere, pela esperança que se esvai e pelo trauma, que auto alimenta a própria dor.
Quem não busca emprego, crendo melhorar de vida? Quem não se relaciona, jurando amor eterno? Quem não vota, com a esperança de tempos melhores?
As ruas exteriorizam o que se passa no íntimo das casas, das empresas, das indústrias, do comércio, das mentes, esperanças e frustrações.
Menos do que adesão a corrente de pensamento político, parece haver movimento voluntário, refletindo a desobediência civil, figura com proteção constitucional, no art. 5º, parágrafo segundo.
Esse pensamento jurídico-político foi categorizado por Henry Thoreau, revelando a resistência do povo – ou parcela da população – ante governo ou prática que esteja aquém do seu interesse.
Não é coisa de radicais, salvo se assim forem chamados Gandhi e Martin Luther King.
Estes se valeram do processo, o primeiro ao liderar o movimento de resistência pacífica aos colonizadores, que resultou na independência da Índia e, o segundo, nas lutas por direitos civis, nos EUA.
Ambos se mostraram vitoriosos e a nossa cultura absorveu as suas lideranças e as ideias que pregavam.
Ações outras levaram à queda do ditador Mubarak, no Egito, que governou o país por cerca de 30 anos, mas não resistiu ao povo nas ruas, por 18 dias.
Fatos semelhantes ocorreram na França, em 1968, na Praça da Paz Celestial, na China, em 1989, na Primavera Árabe, em 2010 e, no Brasil, em 2013.
Em 2014, logo após os protestos que lotaram as ruas brasileiras, publicamos artigo intitulado “O povo se reúne constitucionalmente”, que tinha bases teóricas indicando que o povo sempre irá se reunir e protestar sob o manto constitucional.
O povo, detentor do poder constituinte originário, jamais agirá de modo inconstitucional, mesmo que seja inciente em relação ao alcance e à categorização dos seus atos. Na democracia, atua como detentor do poder original.
Ulisses Guimarães dizia que “a única coisa que mete medo em político é o povo nas ruas”.
Noutro foco, qualquer governante precisa de legitimação popular, não resistindo ao exercício do poder, quando o povo percebe a ausência dessa qualidade.
Na Revolução Francesa, isso ocorreu de modo tão vigoroso, que extinguiu o Antigo Regime e encerrou o Absolutismo.
Contudo, exemplos à parte, é necessário distinguir as manifestações e as suas motivações das eventuais ações excessivas ou praticadas por infiltrados – que se revelem antijurídicos.
Não comparando situações distintas, protestos e reclamações também ocorrem ao final dos jogos de futebol, enquanto uma torcida protesta e outra comemora. A propósito, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva anulou o resultado de 11 jogos, apitados por certo árbitro – isso, apenas, no ano de 2005.
Ainda que se discorde disso ou daquilo, o que é natural, já nada é alvo de unanimidade, é crível que muitos se encorajam e aderem àquele que primeiro grita que “o rei está nu”, como no clássico conto de Hans Christian Andersen.
Bem antes da incidência do fato a uma norma jurídica ou da adequação das condutas às leis, há algo sem forma clara – não por isso incorreta – e mais próxima do senso comum, do Direito natural, dos mais fundamentais princípios emocionalmente vibrantes que alimentam a alma humana e que, ao mesmo tempo, demonstrem pequena ruptura do entorpecimento quase permanente e latente…
Aqui não se faz apologia de nada, apenas se busca compreender o fenômeno, que ocorreu e ocorre, em qualquer lugar do mundo, quando vai às ruas expressiva parcela da população, em marcha organizada ou não, com ou sem causa única provável, pois o que lhe orienta é a simples, direta e consistente linguagem e o seu senso comum.
Há muitos imunes à essa realidade, que teima em querer incomodar os convidados dos faustosos jantares.
Esse andar de cima não se importa pessoas que ousam protestar.
Cazuza cantava sobre sobreviver “sem um arranhão, da caridade de quem me detesta” e isso deve nos fazer refletir.
A vida de muitos segue, indiferente a tudo e aos que querem se provar certos, para os que estejam perdidos nos labirintos dos tortos conceitos e para os envolvidos ou vitimados por manipulação da verdade e da mentira, para que estas se pareçam, conforme a conveniência, com ídolos pintados a ouro, soando dignos de adoração.
Independentemente do hoje, do que se faça ou não, das ruas cheias ou vazias, da carência de investimentos em escolas, creches e hospitais, da atualização dos equipamentos das nossas forças militares, do investimento em transporte intermodal e melhoria das rodoviárias e das rodovias, da solução dos problemas de (in)segurança pública, corrupção, desmandos, improbidade administrativa, desemprego, fome, miséria, produção agrícola e industrial, da confirmação da promessa do Pré-Sal, do Berço Esplêndido onde estamos deitados, a cada dia sobrevivendo, matando um leão por dia, como diz o ditado popular, nos equilibrando na beira do abismo e vencendo o caos, os desmandos e os malfeitos.
Enquanto lutamos e nos esforçamos, muito e cada um a seu modo, para sair das sombras, podemos dizer que, para poucos, a vida segue, intacta, em Paris – a Cidade luz.