A vítima, menarca precoce, inocentemente recebeu o esperma do violador talvez que em seu primeiro período fértil. Que horror!
Entre os lances dramáticos em torno dessa história aparecem figuras que acrescentam matizes ainda mais enfeantes ao caso já feio por si mesmo. A primeira é da extremista que, pelas redes sociais, divulgou a identidade da menina gestante, dos médicos que aceitaram interromper a gestação e ainda concitou a ida de manifestantes ao hospital em que seria feito o aborto numa tentativa de impedir a extração do feto.
Não dá para saber em nome de quais princípios terá agido a divulgadora de dados que nunca podiam ter sido viralizados. E isso não apenas porque a divulgação atenta contra a lei, mas porque a exposição das informações – que deveriam ter sido mantidas em segredo, insiste-se – é ato de brutal indiferença com as partes envolvidas no processo. Em suma: o movimento da extremista e seus seguidores demonstra absoluta falta de empatia; é conduta cruel e desumana, ainda que sob a falsa égide da ideologia antiaborto.
Não que se esteja advogando em favor dos populares que foram à porta do hospital em repúdio daqueles que pretendiam que não fosse interrompida a gravidez da vítima de estupro. Na verdade, nada seria mais piedoso que se manter em silêncio. Silêncio ao menos de um minuto é o que se pede diante de tragédias que a todos comovem, como é o caso dos milhões de vidas humanas que vêm sendo diariamente dizimadas pelo coronavírus.
A lei brasileira criminaliza o aborto como fato típico, antijurídico e culpável, na forma definida nos artigos 124 e 125 do Código Penal. Não são puníveis e não estão previstas na lei as modalidades de aborto atípico, quais sejam o aborto natural ou espontâneo, aquele oriundo de causas patológicas decorrentes de um processo fisiológico espontâneo do organismo feminino; o aborto acidental, derivado de causas exteriores e traumáticas, como queda ao descer uma escada; e o aborto culposo, resultante de conduta imprudente, negligente ou imperita.
No art. 128, o Estatuto Penal expõe formas de aborto típico e jurídico, previstas em lei e não puníveis, definindo no inciso I o aborto terapêutico, aquele que é realizado quando não há outro meio de salvar a vida da gestante; e, no inciso II, o aborto sentimental e humanitário, que autoriza o médico a realizar o aborto quando a gravidez resulta de estupro.
No caso em foco, afigura-se duplamente legítimo o aborto. Em primeiro lugar, a gestante é uma criança de dez anos, faixa etária anterior à adolescência que se convenciona ter início aos doze. Apesar de menarca, isto é, com o organismo apto a produzir óvulos, a conformação anatômica da menina colocaria em risco a vida da parturiente no processo de expulsão do feto pela via natural, assim se amoldando, em tese, ao permissivo legal do art. 128, I, do Código Penal, que se refere à modalidade de aborto terapêutico.
Em segundo lugar, a gravidez resultou de estupro. Comezinho bom senso aponta que uma criança é incapaz de consentir a cópula. Pela mesma via, tem-se que é asquerosa a concupiscência do adulto dirigida para uma criança de dez anos de idade, tanto mais quando se verifica que o abuso começou a ser praticado quando a vítima tinha apenas seis anos. A violência sexual contra o menor vulnerável é ficta, isto é, presume-se existente diante da incapacidade, e até inconsciência da vítima para consentir na prática da conjunção carnal.
O Código Penal, art. 214, alínea “a”, estabelece que a presunção de violência é absoluta quando a relação sexual se dá entre agente e vítima menor de 14 anos, independente de a relação ser consentida ou obtida mediante emprego de violência real ou ficta.
Por conseguinte, não é objeto de debate se, numa criança de dez anos, a interrupção de gravidez indesejada por todos, a começar pelo próprio estuprador, passando pelos parentes, pelos médicos, pela sociedade em geral e até pela própria menina grávida. Esta, coitadinha, aterrorizada com as “dores na barriga”, implorava que a curassem daquela doença…
Diante de monstros como esse tio tarado e criminoso; dessa extremista que, em nome de ideologia que abraça, não hesitou em divulgar a identidade da indefesa vítima, dos médicos que iriam livrar a pequena gestante daquela “dor de barriga” e até informando o endereço do hospital; dos seguidores da extremista que foram fazer barulho na tentativa de impedir que se fizesse o aborto; enfim, diante de tamanha crueldade, lembro-me do autor das “Viagens de Gulliver”, o irlandês Jonathan Swift.
A obra, que para muitos parece um relato de aventuras vividas entre um viajor e os minúsculos habitantes de Liliputh, mas que na verdade se trata de uma cáustica alegoria à impiedade com que a Inglaterra procedeu para dominar o povo da Irlanda, levou Swift a isolar-se do convívio social, vindo a declarar: – “Sou perfeitamente capaz de amar João, Pedro, Joana ou Maria, mas tenho a obrigação racional de detestar o gênero humano.”
Esse espírito de revolta me assoma quando penso naqueles que, por variadas razões e espanando argumentos estapafúrdios, parecem permanecer insensíveis ao drama de uma garotinha de dez anos que reza para que apareça uma alma caridosa que a cure de sua “dor de barriga”.
Rui Guilherme
Juiz de Direito e Escritor.