Pense nisso
“Cada pessoa é guardiã da sua própria honra”
1. Macapá recende a maniçoba
Por onde a gente passou nestes dias que antecederam o Círio de Nossa Senhora de Nazaré exalava das casas – das mais humildes as mais luxuosas – o cheiro da gostosa maniçoba, comida que – ao lado do pato no tucupi – não pode faltar no almoço do segundo domingo de outubro.
E esse cheiro me leva de volta à infância. Lembro-me de minha avó Jacinta Carvalho – uma negrinha linda de cabelos muito lisos – cozinhando a maniva numa enorme panela no fogo à lenha no quintal da nossa casa. Eram sete dias que a maniva tinha que ficar no fogo para “tirar todo o veneno”.
Depois que minha vó morreu a “festa da maniçoba” para nós era na casa da professora Eurydice. Mas aí eu já estava bem grandinha.
Cerca de 10 dias antes do Círio o Janjão, marido da Eurydice, comprava a maniva que seria moída com a ajuda de toda a molecada e adolescentes da rua. A vizinhança emprestava a máquina de moer. Numa mesa grande na cozinha, Janjão prendia as máquinas e a molecada em volta fazia a festa moendo. Todo mundo queria ajudar. E como era divertido!
Quilos e quilos de maniva moída, Janjão preparava o fogo no quintal e lá ia o panelão para o fogo. Sete dias cozinhando dia e noite e haja lenha para o fogo não apagar. Só depois de sete dias, os “entulhos” eram misturados às folhas: carne, rabo de porco, costela de porco, bucho, linguiça, paio, calabresa, toucinho etc etc e os temperos. Aí sim, exalava aquele cheiro de dar água na boca.
No sábado à noite a maniçoba já estava no ponto e dona Eurydice mandava para cada vizinho uma farta porção.
Hoje está tudo mais fácil, qualquer pessoa pode fazer rapidinho uma panela de maniçoba. Já se compra a maniva maniçoba moída e pré-cozida nos supermercados, os “entulhos” já são comprados escaldados e limpos, às vezes até temperados.
O tempo para fazer a maniçoba, que era de cerca de dez dias (desde moer até o completo cozimento) foi bastante reduzido.
Ah, e já tem supermercado que já vende a maniçoba prontinha. É só levar pra casa e esquentar na hora de servir.
Se por um lado tudo tornou-se mais fácil e mais rápido, por outro perdeu-se o encanto da “festa da maniçoba”, a alegria da molecada em volta da grande mesa moendo as folhas, e aquela cumplicidade gostosa que havia entre a vizinhança.
2. Antes da pandemia era assim o Domingo de Círio
Antes da pandemia, o segundo domingo de outubro era dia de reunir a família no tradicional almoço do Círio de Nazaré.
Por volta das 10h da manhã já estava quase tudo pronto na minha casa. Alcilene fazia a maniçoba, eu o pato no tucupi, o Alcione fazia o camusquim. O cheiro do tucupi com chicória tomava conta da minha casa e me dava água na boca, enquanto milhares de pessoas assistiam a missa campal em louvor a Virgem de Nazaré, padroeira da Amazônia, na Praça Nossa Senhora de Fátima.
Depois de colocar os últimos temperos no pato eu ia ver a procissão passar e pedir à Padroeira que abençoasse o povo que habita esta latitude, que dê saúde e paz a todos que vivem no Amapá.
Eu não acompanho a procissão, mas todos os anos vou ver. Me emociono quando a Santa passa, com o manto todo rebordado, numa berlinda enfeitada com as flores mais belas. Me emociono com a multidão cantando e rezando com fervor. Me emociono com os pagadores de promessa, uns descalços, outros agarrados na corda, outros levando miniaturas de casas e de barcos na cabeça e mais outros carregando bonecos de cera. Me emociono com as crianças vestidas de anjo. E essas crianças, tão puras e tão ternas, são anjos mesmo.
Gosto de ver o carinho com que milhares de pessoas distribuem água nas esquinas para os romeiros. O altar montado na frente das casas por onde a procissão passa, a queima de fogos, gente distribuindo ventarolas ou fitinhas. Acho tudo isso lindo.
Gosto de ver também que neste dia os políticos se misturam ao povo. Uns porque são religiosos, outros pagando promessa ou agradecendo as graças recebidas. Mas há também aqueles que querem apenas medir sua popularidade ou já conquistar uns votinhos pra próxima eleição. Nem tudo é perfeito, né?
Sinto a presença de Deus no meio da multidão. Nesta hora fica muito claro para mim o que minha religião (Messiânica) ensina: todos nós temos uma partícula divina. E sendo assim deveríamos todos nos comportar como irmãos e cultivar o altruísmo.
Depois que a procissão passava, eu voltava correndo para casa. Era preciso arrumar tudo, muito bonito e com muito carinho, para receber os familiares que acompanhavam a procissão. E para isso sempre contei com o apoio do marido e do filho. Eles colocam a cerveja, o vinho e o refrigerante pra gelar. Me ajudam a arrumar a mesa no quintal, sob a frondosa mangueira. Meu quintal, cheio de verde, de flores, de chicórias e alfavacas, de passarinhos e paquinhas, fica mais bonito, mais iluminado, mais alegre quando a família se reúne.
Este ano, por causa da pandemia, não tem missa campal, não tem procissão, não tem família reunida no quintal. É casa um em sua casa, rezando, pedindo à Virgem de Nazaré que restaure a saúde dos que estão internados, que console aqueles que perderam parentes e amigos, que proteja os profissionais da saúde que estão na linha de frente e que essa pandemia passe logo.
E como é ano de eleição, a gente pede também que Nossa Senhora de Nazaré ilumine os eleitores para que no dia 15 de novembro votem naqueles que tenham o desejo verdadeiro (e capacidade) de trabalhar em benefício das cidades e do povo.
Alcinéa Cavalcante
Jornalista e escritora
Alcinéa Cavalcante
Jornalista e escritora