Noticia-se que a imensa usina hidrelétrica de Belo Monte está em situação crítica, diante do quadro de escassez hídrica.
O fato é que a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), que integra a estrutura do Governo Federal, no dia 30 de setembro de 2024 aprovou Declaração de Situação Crítica de Escassez Quantitativa de Recursos Hídricos, envolvendo o rio Xingu, que tem no seu curso a usina hidrelétrica de Belo Monte, uma das maiores do país, cobrindo cerca de 11% da capacidade de produção de energia no sistema nacional interligado.
Isso levou ao rebaixamento do nível do reservatório intermediário da usina, com reflexos na redução da produção energética e das vazões nos limites naturais. Com a redução das vazões, ficam afetadas a navegação e, portanto, a vida das populações ribeirinhas.
Nesse momento, é importante relembrar o conteúdo de matéria do ano de 2015, intitulada “O que faltava”, publicada em coluna do jornal O Globo, por Miriam Leitão, do qual destacamos preciosos trechos:
“Para que saísse a licença ambiental, foram despachadas ordens diretas do Palácio do Planalto. Ponderações de técnicos foram ignoradas. O Ibama foi atropelado. Relatórios de especialistas do próprio governo foram deixados de lado. […] Três diretores se demitiram […] O Ministério Público fez várias perguntas ao BNDES em março de 2010, e ele respondeu que desconhecia detalhes do projeto […] Tudo foi ignorado: documentos de cientistas fazendo os mais variados alertas de que os riscos não estavam dimensionados, de que o regime hídrico mudaria durante a vida útil da usina, de que não fora possível avaliar o volume de sedimentos do rio, nem o impacto do canal de 100 quilômetros que seria construído, ou os avisos de que não se avaliara devidamente os riscos para os indígenas. A obra foi feita da forma mais autoritária que já se viu na democracia. Aliás, nem a ditadura quis enfrentar esses riscos e a obra projetada foi adiada. Havia dúvidas razoáveis sobre a vantagem de fazer uma hidrelétrica deste tamanho em um rio cuja vazão oscila muito. É falsa a informação tão insistentemente propagada de que ela é uma hidrelétrica de 11 mil megawatts […] Os técnicos suspeitam que haverá meses em que ela não vai conseguir gerar muito mais que mil megawatts.” Para quem quiser conhecer todo o conteúdo do importante texto, informamos a fonte: https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/o-que-faltava-562434.html
Há remota semelhança entre esse contexto e a decisão de se construir a Rodovia Transamazônica, como explica Élio Gáspari, na obra A Ditadura Derrotada (2003, p. 297): “o texto do Programa de Metas e Bases para a Ação do Governo estava na gráfica quando Velloso foi surpreendido pela decisão de Médici (tomada durante uma conversa de avião) de mandar rasgar a rodovia Transamazônica. Tivera de recolher os originais do seu plano estratégico, reescrevendo-os e fazendo crer que o voluntarismo presidencial foi um ato pensado, inserido no programa de Integração Nacional, o PIN”. Élio Gáspari reafirma-o em outro livro (A Ditadura Escancarada, 2002, p. 409), dizendo que a abertura da Transamazônica foi “decidida por Médici nos primeiros meses de seu governo”.
As consequências vemos até hoje e Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Starling as mencionam, na obra Brasil, uma biografia (2015, p. 454), dizendo que “A construção da Transamazônica massacrou a floresta, consumiu bilhões de dólares, e até hoje a estrada tem trechos intransitáveis por conta das chuvas, dos desmoronamentos e das enchentes dos rios. A transamazônica torrou um dinheiro que não havia, mas os brasileiros só entenderam isso na hora em que acabou o milagre e a inflação bateu na casa dos três dígitos.
Isso aviva em nossa lembrança as palavras de Saulo Ramos, ex-Ministro da Justiça e ex-Consultor Geral da República, formuladas no livro Código da Vida (2007, p. 140), quando foi preciso ao dizer:
“a verdade é que a Amazônia se tornou uma terra sem lei. Tudo ali é mentira: títulos de propriedade privada de terras sobre áreas devolutas, de domínio público; derrubada de florestas, negócio altamente rentável, mas desgraçadamente destrutivo das riquezas ambientais; grileiros, ladrões, pistoleiros, assassinos misturados com um coitados que se dizem trabalhadores sem-terra, mas igualmente aventureiros, pois ninguém respeita a floresta […] Mais que fundiária. É o processo de destruição da floresta amazônica. Toda vez que o Governo constrói uma estrada naquela região, o que acontece? Progresso? Civilização? Nada disso! Surgem os grileiros de terra, que atraem as madeireiras para cortar as árvores, levar os troncos, deixar as áreas limpas para plantio e fazer estradas vicinais, por onde transportam a pilhagem. E logo vem os sem-terra reivindicando direito de ocupar áreas tomadas pelos grileiros, porque são públicas. Eles sustentam que as terras, por serem públicas, são deles”.
A falta de planejamento e deferência aos dizeres dos especialistas enseja situações que são de difícil controle, contribuindo para a ação de grileiros e outros que agem às margens do Estado e do Direito, com ações que agridem o meio ambiente e o patrimônio público fundiário, afetando as terras devolutas, indígenas e de comunidades tradicionais e a cultura e a própria vida na região.
A propósito, dissemos na obra Grilagem das Terras e da Soberania (2017, p. 202) que “o desmatamento não para! As notícias diárias veiculadas nos jornais ou na internet a respeito parecem indicar os índices da bolsa de valores, na medida em que vive subindo ou descendo os seus índices, mas que o fato não acaba.”
Faltam mecanismos de controle à altura dos desafios em tão vasta extensão territorial, pois afinal, a Amazônia Legal envolve 9 Estados da Federação e 59% do território nacional, onde as chamas têm preocupado e consumido mais do que a vegetação, comprometendo a vida visível e a microbiologia das terras e do solo. Além disso, há a mencionada indevida ocupação de terras públicas e problemas com a extração ilegal de minérios e produtos da floresta.
Precisamos proteger esses ecossistemas sensíveis, as matas e florestas, os rios e a água doce pura (cada vez mais rara no mundo), pela sustentabilidade. Contudo, essa palavra não é conceito abstrato e deve ser, sim, instrumento de efetiva sustentação e conservação do contexto Agrário-Ambiental-Energético. Fá-lo de forma que as ações presentes não comprometam o futuro, diante dos impactos que podem surgir das atividades exercidas na terra e que envolvam o manejo e o consumo de grandes quantidades de água, resumidamente passíveis de solução via licenciamento ambiental, hábil mecanismo de controle, organização, planejamento e gestão, por meio do qual o Poder Público pode conhecer e controlar atividades potencialmente danosas, poluidoras ou causadoras de significativos danos.
Quando a instância de controle preventivo não resolve, qualquer solução posterior fica mais difícil. Exemplo disso estamos vivendo hoje, como visto. No mundo globalizado, notadamente nos tempos atuais, onde questões ligadas ao meio ambiente pátrio desperta interesse internacional, é importante se considerar perspectivas além fronteiras, notadamente neste momento, pois estamos às vésperas da COP 30, que ocorrerá em Belém do Pará, no ano de 2025, atraindo os olhares mais críticos do mundo para a nossa realidade e, decerto, não passará despercebida essa questão envolvendo imensa usina que rasgou a floresta e que represa grande rio, embora no momento não alcance todo o seu potencial energético pelo impacto dessa situação de escassez hídrica.
Belo Monte parando e isso foi previsto e ignorado.
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