Alvos de operações policiais contra um megaesquema de lavagem de dinheiro que envolve até o Primeiro Comando da Capital (PCC) e de disputas judiciais milionárias, fundos de investimentos da Faria Lima, principal centro financeiro do país, estão sendo utilizados como uma caixa-preta para esconder fortunas de organizações criminosas, políticos e empresários, e para blindar o patrimônio de grandes devedores.
Uma apuração do Metrópoles rastreou ao menos 177 fundos de investimentos que não são listados na Bolsa de Valores, operam sem auditoria ou são considerados inauditáveis por falta de documentos, possuem apenas um ou dois investidores, no geral — em mais da metade deles, o cotista é outro fundo —, e investem em apenas uma empresa. Juntos, eles acumulam R$ 55 bilhões em patrimônio líquido.
Todas essas características foram apontadas como suspeitas pela Polícia Federal (PF) e pela Receita Federal nos fundos que foram alvos das operações Quasar e Tank, que investigam o uso deste mecanismo do mercado para lavagem de dinheiro do setor de combustíveis. No Judiciário, a mesma engenharia financeira é apontada como um artifício para fraudes em disputas envolvendo bancos e grandes empresas.
As gestoras e administradoras desses fundos analisados pela reportagem são seis instituições financeiras da Faria Lima que foram citadas ou são investigadas em diferentes operações policiais, ou têm sido cobradas pela Justiça a apontar o beneficiário final de fundos envolvidos em processos de dívidas milionárias. São elas: Altinvest, FIDD, Reag e Trustee (investigadas pela polícia), Genial (citada em investigação por causa de um fundo suspeito), e Planner (contestada na Justiça).
Em uma série de reportagens publicadas a partir desta quarta-feira (17/9), o Metrópoles detalha grandes casos envolvendo fundos de gestores e administradoras investigadas em operações policiais ou alvo de contestações na Justiça por causa do mecanismo de caixa-preta.
Entre os casos levantados estão os fundos usados pelos barões dos combustíveis investigados por fraudes, sonegação fiscal e lavagem de dinheiro, e outro ligado ao empresário João Appolinário, o dono da rede varejista Polishop que ficou famoso como um dos jurados do programa televisivo “Shark Tank” e trava uma batalha judicial com credores.
Há também o caso de um fundo da Reag, gestora investigada no suposto esquema de lavagem que conecta o PCC à Faria Lima, que é ligado à rede atacadista Roldão e teria sido utilizado para esconder a transação de um terreno subfaturado do Jockey Club de São Vicente, no litoral paulista. Em ao menos dois casos, as administradoras da Faria Lima têm driblado ou resistido a ordens judiciais para abrir a caixa-preta e identificar os reais beneficiários de fundos sob suspeita de blindar patrimônio de empresários.
Ao todo, o Metrópoles analisou 470 demonstrações financeiras e balanços de fundos de investimentos fechados da Faria Lima. São documentos públicos disponibilizados, por exigência legal, na base de dados da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que tem o dever de fiscalizar esses ativos.
Em 71% dos 177 fundos com fragilidades detectadas pela reportagem, os auditores relatam que se abstiveram de fazer análise por falta de documentos essenciais. Nos demais (29%), não há sequer relatório de auditoria independente. Do total, 100 fundos têm apenas um único cotista, ao contrário dos fundos comuns. Ao menos 20 deles são mencionados em situações relacionadas a fraudes e até crimes.
Só a Reag, que foi o principal alvo das operações deflagradas em agosto, tem 72 fundos que operam como caixa-preta e gerem R$ 45 bilhões em patrimônio líquido. Do total, 47 deles têm como seus únicos cotistas outros fundos, o que cria uma camada para dificultar a identificação do beneficiário final dos recursos.
“A falta de transparência e conformidade é uma característica recorrente nesses esquemas, com fundos omitindo informações de seus ativos na CVM, atrasando ou ausentando-se de pareceres de auditoria independente”, afirmou a PF no relatório da investigação sobre o uso de fundos da Faria Lima por empresas do setor de combustíveis para blindar ou lavar dinheiro do crime.
O Metrópoles apurou que, após apreensão de computadores e celulares das gestoras e administradoras da Faria Lima alvos das operações do dia 28 de agosto, a PF vai aprofundar as investigações sobre fundos que têm exatamente este perfil e entender se o mecanismo de caixa-preta oferecido pelo mercado financeiro foi utilizado por outras organizações criminosas.
Nem sempre essa estrutura é criminosa ou fraudulenta. No entanto, fundos nesses moldes propiciam um verdadeiro esconderijo ao dinheiro aportado neles. Isso porque públicas são somente as informações sobre em quais companhias esses fundos investem. E, sigilosos, são os nomes dos investidores — os donos do dinheiro abrigado nesses fundos.
Quando há indícios de fraudes, administradoras desses fundos privados têm dificultado ao máximo o acesso aos nomes dos beneficiários finais do dinheiro. Não raro, quando um juiz ordena abrir a caixa-preta, descobre-se que o investidor é outro fundo. Como não há limite legal para essas camadas, a origem do dinheiro, muitas vezes, não é identificada.
Dos 177 fundos com fragilidades analisados, 71 (38%) têm como únicos investidores outros fundos de investimentos. Após as operações de agosto apontarem o uso desse mecanismo do mercado finaneiro pelo crime organizado, a Receita Federal pretende obrigar que os fundos de investimento identifiquem o CPF do beneficiário final dos recursos, numa tentativa de abrir a caixa-preta da Faria Lima e coibir crimes.
Empresas afirmam que auditam fundos e cumprem decisões
Após ser alvo da megaoperação de agosto, a Reag investimentos afirmou que “nunca manteve, mantém ou manterá qualquer relação com grupos criminosos, incluindo o PCC, nem com quaisquer atividades ilícitas”.
“A companhia atua de forma estritamente regular, sempre em conformidade com a legislação vigente e sob rígidos padrões de governança, compliance e auditoria”, afirmou. Na semana passada, o fundador da Reag, José Carlos Mansur, vendeu sua parte na empresa aos sócios após ser alvo de busca e apreensão da PF.
Já a Planner afirmou ao Metrópoles que todos os fundos sob sua administração “possuem demonstrações financeiras auditadas e publicadas no site da CVM”. “Além disso, a Planner adota todas as diligências necessárias para a entrega de subsídios ao auditor, de modo que, na hipótese de qualquer apontamento, como a abstenção, são tomadas as devidas providências para endereçar o apontamento objeto da demonstração financeira auditada, em estrito cumprimento às normas legais e regulatórias e em observância às melhores práticas de mercado”.
Sobre decisões judiciais que têm cobrado a abertura de cotistas de fundos, a Planner afirma que “cumpre rigorosamente com suas obrigações fiduciárias e o dever de sigilo estabelecidos pelo Bacen [Banco Central] e pela CVM, assim, em obediência à legislação vigente, a entrega da lista de cotistas é realizada mediante determinação judicial ou por solicitação dos órgãos reguladores”.
Outra administradora de fundos alvo da operação contra o crime organizado em agosto, a Trustee afirmou que já havia renunciado à gestão de todos os fundos antes da deflagração da Operação Carbono Oculto. De acordo com a empresa, a medida foi tomada “por decisão da área de compliance da Trustee DTVM, por desconformidade de atualização cadastral identificada há alguns meses”.
Ainda segundo a companhia, a Trustee se baseia em processos rigorosos de diligência e em constante averiguação das aplicações nos fundos, além do perfil de seus cotistas. A empresa “ressalta, ainda, que não possui qualquer relação pessoal com os investigados” na operação.
Em nota divulgada após a operação policial, o Banco Genial afirmou que não é investigado e não foi alvo de busca e apreensão. Segundo a instituição, o fundo investigado por lavagem ao PCC foi estruturado, inicialmente, por outros prestadores de serviços e acabou sendo transferido ao banco em 2024.
“Na qualidade de administrador do fundo, o Banco Genial cumpriu rigorosamente todas as diligências de compliance, tendo rastreado toda a estrutura societária até a identificação do beneficiário final”, afirmou o banco em nota pública. No documento, a instituição também comunicou ter renunciado à prestação dos serviços ao fundo após a operação, “em respeito à transparência e à confiança do mercado”.
Por meio de nota, o Roldão negou relação societária ou de gestão com o fundo dono do imóvel em São Vicente e disse que “é locatário do imóvel junto a um fundo de investimento exclusivo e independente, sem qualquer relação com os fundos acionistas da empresa”.
A rede afirma também que “a gestão dos fundos acionistas do Roldão Atacadista é realizada pela Reag, em conformidade com todos os rígidos critérios da legislação aplicável e da CVM”, e que não tem qualquer relação com investigações envolvendo a gestora de fundos.
Já o Jockey respondeu ao Metrópoles desconhecer a ação judicial sobre o imbróglio e que a venda do terreno é uma “transação absolutamente legítima, aprovada e previamente discutida em amplo órgão colegiado”.
Após a publicação desta reportagem, a Altinvest emitiu nota na qual “repudia veementemente toda e qualquer relação com o crime organizado”. “Nossas operações são conduzidas com total transparência, respeito, seriedade e em conformidade com as normas da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima), órgãos que regulam e fiscalizam os fundos de investimento no Brasil, incluindo o envio periódico de informações obrigatórias dos fundos e cotistas para tais órgãos e para o Bacen. Refutamos de forma categórica qualquer vínculo com atividades irregulares. Seguimos, desde o início, colaborando com a investigação e com as autoridades competentes.”
Procuradas, a FIDD não se manifestou e a Polishop afirmou que não comenta processos em andamento.
Fonte: Metrópoles