Tomariam posse como juízes titulares de 1ª Entrância nas Comarcas ao norte do Estado: João Guilherme Lages, em Ferreira Gomes; Alaíde, no Oiapoque; Rui Guilherme, no Amapá; Ernesto Collares, em Tartarugalzinho; Scapin, em Calçoene. Na época, não eram sede de comarca outras cidades do setentrião amapaense além dessas cinco.
A Constituição de 1988 elevara o Território Federal do Amapá à condição de Estado Federado, porém quase três anos se passariam até que pudesse ser criado o Tribunal de Justiça do Estado, o que aconteceu em janeiro de 1991, salvo engano. Tinha atribuições meramente administrativas até que pudesse ser realizado o certame para admissão dos juízes de Direito titulares e substitutos que iriam assumir as Varas da Capital, então Terceira Entrância; as de Santana e a de Laranjal do Jari, Segunda Entrância. As Comarcas de Primeira Entrância eram Serra do Navio, Mazagão, Ferreira Gomes, Tartarugalzinho, Amapá, Calçoene e Oiapoque.
A posse dos novéis Juízes aconteceu em solenidade realizada em 5/10/91 no Teatro das Bacabeiras, Macapá. O TJDFT encerrara suas atividades jurisdicionais no Estado do Amapá, transferindo a competência para o seu congênere Tribunal de Justiça do Estado do Amapá (TJAP). Coube, então, aos sete desembargadores do TJAP dividir esforços para entregar a jurisdição de primeiro grau aos recém-empossados Juízes de Direito Titulares da capital e do interior.
Foi o dileto amigo desembargador Luiz Carlos que me levou à Comarca de Amapá para que lá eu pudesse assumir minha jurisdição. Dada a posse, voltamos para a capital, a fim de providências ulteriores; entre essas, material de expediente para trazer para o fórum e ultimação de minha mudança para morar na comarca.
Luiz Carlos, sempre muito gentil, me diz:- “Doutor, limitações de verba não permitem ao Tribunal dar uma viatura nova para cada juiz. Para você, tem um utilitário herdado do TJDFT cuja reforma eu entreguei a uma oficina de confiança. Não é um carro novo, mas foi inteiramente reformado.”
Tratava-se de um jipe Gurgel, mecânica e motor Volkswagen, tudo montado sobre uma cabine de fibra toda fechada, quente, um verdadeiro suplício de se andar no calor constante do Amapá. Quando fui buscar o carro, achei estranho que o carro era capenga, penso, totalmente desengonçado. Logo percebi que uma das rodas dianteiras era menor que as demais: não só o pneu era mais pequeno, como menor era o aro. O barulho era forte, o cheiro de gasolina preenchia o ar da cabine. Logo o Gurgel foi batizado: Burra Velha.
Não dava para enfrentar os percalços do estirão de mais de trezentos quilômetros de piçarra solta de Macapá até o ramal da cidade de Amapá. Mesmo com as rodas trocadas para o mesmo aro e mais alguns ajustes para poder rodar adequadamente, asfalto só havia até meia dúzia de quilômetros depois de ultrapassada a ponte sobre o rio Araguari, na entrada de Ferreira Gomes. O caminho era deserto, sendo raras as vezes em que a Burra Velha cruzava com outro veículo, atravessando nuvens de poeira avermelhada. Ainda assim, a Burra Velha bravamente aguentou umas quatro viagens de Macapá até Amapá.
Numa das vindas para a capital, dei carona para meu colega Collares. Marly, esposa dele, veio conosco – coitada! – enfiada no banco traseiro, onde fazia ainda mais calor. Traziam uns tucunarés porrudos em uma cuba que amarramos no teto da Burra Velha. Com o sacolejo constante, e mais o intenso calor do sol do meio da tarde, começou a escorrer um caldo mal cheiroso que nos obrigou a parar na estrada para recondicionar os pescados e para que Marly, verde de enjoo, pudesse recuperar-se o bastante para aguentar o resto das horas de viagem.
Tempos heróicos, aqueles. Temperados pela juventude de então, fica divertido lembrar de tantas aventuras. E da Burra Velha, que entregou os pontos definitivamente a meio de uma ida frustrada, recusando-se terminantemente a prosseguir qualquer metro além de Ferreira Gomes, onde fui acudido pelo juiz João Guilherme Lages, que mandou recolher o jipe à garagem esperando o que sobre ele se decidisse, e de meu querido amigo Eder Abreu, promotor de justiça que me deu carona até Macapá, da Burra Velha o que resta é uma saudade marota e a alegria de olhar para trás e ter a tranquila certeza de ter contribuído para a história da criação e desenvolvimento da Justiça do Amapá.
Não sei que fim levou a Burra Velha. Para meus deslocamentos, dei um golpe no então diretor geral do Tribunal, David. Ele me falou:- “Doutor, tenho aqui uma camioneta cabine simples, uma Pampa, da Ford. Se o senhor quiser, eu posso emprestar para o senhor ir até a Comarca e depois a gente vê como resolve.”
A Pampa estava nova em folha. A cabine não era refrigerada, mas entre ela e a Burra Velha a diferença era abissal.
O bom camarada e diretor geral David bem que andou me fazendo ingentes apelos para devolução da Pampa. Promovido no início de 1992, vim embora do Amapá para a Comarca de Santana. Lá pelo norte deixei a camioneta Pampa. O que dela fez o Paulo Feijó, juiz que me substituiu e que hoje é juiz no Paraná, ele que lhes conte, porque meu relato termina com esta minha confissão de que nada sei do destino da Pampa, e muito menos da Burra Velha.