É interessante como palavras podem passar a ter sentido diferente do que realmente significam. A palavra escola é ótimo exemplo. Na Grécia, escola tinha o sentido de ócio, de tempo disponível e livre do trabalho: schole. Isso foi há 4.000 anos. Era o tempo em que os trabalhadores, como pastores e agricultores, não estavam envolvidos no trabalho diário e podiam se reunir para conversar. O significado da palavra foi se modificando, para se fixar no local apropriado ao estudo. Recentemente, parece que a palavra Democracia também já sobre com esse desvio do seu significado original. Só que, no caso, com o negativo reflexo de poder subverter e corromper o seu elevado valor político e social. Não é incomum vermos a palavra associada a fatos e momentos, como a lhes emprestar significado quando, em verdade, ocorre o oposto, desenraizando-se a democracia do seu sentido original, como temos visto até em relação ao Carnaval e outros eventos populares, vendo-os expressão da Democracia. Podem ser exercícios de liberdade e democráticos, mas não são a própria Democracia. Aliás, havia Carnaval e outras festas em plena Ditadura de Getúlio Vargas, como, também, durante aquela iniciada em 1964 – e não se pode achar que eram festejos democráticos em pleno regime tido por ditatorial. Por falar em Vargas, após a Revolução de 1930 que o levou ao Poder e, portanto, em plena Ditadura, foi em 1937 que, por ato governamental, se sedimentou a espontânea manifestação popular como evento carnavalesco oficial, desde 1932, inclusive, com investimento público. Esse curto e singelo artigo não tem a pretensão de esgotar o complexo tema e sim, apenas, de explorar os perigos do uso da palavra Democracia fora do seu real contexto, significado e reflexos na vida cotidiana do país. Quando isso ocorre com palavra dessa estatura é que se torna mais relevante a defesa do real significado ou sentido das palavras. A Democracia atual não tem o mesmo significado que os antigos gregos lhe atribuíam, resultando mais da experiência dos EUA, tornado independente da Inglaterra em 04 de julho de 1776 e que, pelos debates em torno do país que desejavam formar, deu origem ao seu modo de ser, por meio da sua Constituição. Esta, digamos sem pressa de ganhar vida e após boa maturação das ideias em confronto entre republicanos e federalistas, só surgiu em 1787. É texto enxuto, funcional e reconhecidamente estável, expressando solução para ajustar as teses republicanas e federalistas, que se enfrentavam, com os primeiros defendendo a autonomia dos estados ante o governo central, ao contrário dos últimos, que alvitravam que a centralização deveria ser fortalecida. O texto original ainda vige, tendo sofrido algumas emendas, como o importante conjunto chamado de Bill of Rights, cuidando da liberdade religiosa e da liberdade de expressão. Assim, a despeito de mudanças, essas foram atualizações agregadoras e confirmadoras do seu sentido original, não sendo mudanças desestruturadoras ou negativas da sua essência. De modo distinto, atribuir caráter democrático a eventos como o Carnaval é emprestar-lhe sentido distorcido que até poderia se justificar como certa nota dissonante ou ponto fora da curva em um específico e determinado contexto ou discurso metafórico, não encontrando, todavia, justificativa linguística, sob pena de desserviço ao real elevado sentido da palavra Democracia. Para essa compreensão, é fundamental se compreender as sedimentadas raízes conceituais e filosóficas a seu respeito, plantadas por Alexander Hamilton, James Madison e John Ray, que escreveram os chamados Artigos Federalistas, constituídos por 85 estudos e que decorreram das reuniões havidas na Filadélfia, em 1787, mesmo ano do parto daquela Constituição. Mais do que colaborar para a definição dos artigos constitucionais, esses pensadores expuseram, justificada e profundamente, os fundamentos das suas ideias as suas preocupações com cada movimento em torno do surgimento daquele novo país. Interessante é notar e destacar que aqueles pensamentos não estão ultrapassados, sendo atuais e plenamente válidos, mormente quando sob qualquer sorte de análise estiverem os direitos e liberdades individuais das pessoas. Detalhe curioso e que deve nos fazer refletir é que pensaram de modo a que o governo funcionasse a partir do respeito da preservação e proteção da liberdade individual, com James Madison dizendo: …”Ao moldar um governo que deve ser exercido por homens sobre homens […] é preciso primeiro capacitar o governo […] a se controlar a si próprio”.
Provavelmente, quem melhor captou o espírito do que construíram e o alcance e dimensão de tudo aquilo foi o francês Alexis de Tocqueville, que, após viajar aos EUA, escreveu duas obras fundamentais, intituladas A Democracia na América e O Antigo Regime e a Revolução. Entender a essência é tão importante quanto estudá-la nas primeiras fontes. De tudo e com foco no cotidiano, a Democracia representativa exige que o cidadão se porte como tal e compreenda que o funcionamento do Regime e das Instituições, os gastos públicos, o sistema de freios e contrapesos entre os poderes republicanos, etc, estão muito além da democracia eleitoral, focada, digamos, no exercício do direito/dever de escolha dos representantes, em eleições periódicas. Para o bom funcionamento do sistema democrático em uma república, os cidadãos devem ser atentos, críticos e detentores de voz, pois o sistema precisa de ajuste constante e permanente. O respeito às minorias é importante e lhes assegurar voz corresponde ao valor que se dá à Democracia.
Apenas votar e ser votado não traduz a amplitude do conceito de cidadania, do mesmo modo que o indivíduo não pode ser visto de modo torto pelo Poder, como se o fato de clamar por comida, emprego, segurança pública, transparência e saúde fosse um estorvo aos detentores do poder. Na verdade, na essência das coisas, o Estado é uma ficção jurídica e que tem por fim organizar as nossas vidas e zelar pela segurança interna e externa, sendo soberano ante outros países e o primeiro cumpridor da Constituição e das nossas leis, motivo pelo qual não pode assumir traços de criatura que se volta contra os criadores. Partes desse horizonte estão na igualdade de todos perante a lei e na diretriz de isonomia real e íntegra. Somos todos brasileiros e estamos sob o manto e proteção da mesma Nação, da mesma Bandeira e, em caso de guerra, das mesmas forças armadas, identificados pelo mesmo Hino, mesma Língua e mesma nacionalidade. Somos o povo brasileiro e tudo o que significa. Assim, não é impróprio vermos a Democracia, na República, como um modo de ser e de viver. Rachar essa unidade nacional e negar a inteireza de certos valores significa desfavor à Nação e desconstrução de vínculos estruturantes da nossa história e brasilidade. Decerto não ajudam as medidas de subversão das palavras e do seu significado e alcance, como ocorre com a ideia de que festas populares, como o Carnaval, sejam a Democracia. Antes de avançar, a par da alegria contagiante, da liberdade das fantasias, passos, coreografias e do clima de entusiasmo nas ruas e avenidas, não podemos nos esquecer de que, se tal sugestão decorre da tomada das festas e ruas pelo povo, é bom registrar que nem tudo ali é igualdade democrática, na medida em que, nos desfiles, não são acessíveis a todos os preços dos ingressos nos camarotes e arquibancadas, o mesmo ocorrendo com abadás e com quem está dentro ou fora das cordas que acompanham os carros de som. Sob outro prisma, se igualdade envolve combate à intolerância e ao diferente, deve-se levar em conta que nem toda a população quer pular carnaval e tem de tolerar as mudanças de trânsito e as ruas fechadas para a passagem dos blocos e desfiles. Afinal, a festa é de todos os que dela queiram participar – olhem a liberdade, aí – o que não significa que todos tenham a obrigação de fazê-lo – de novo, a liberdade constitucional se faz presente. Perceber que liberdade combina com Democracia é fato. Concluir que essa liberdade das festas é Democracia é sinal de perigo, pois poderia ensejar que se pensasse que esta, a Democracia, significa isso. Assim, se por um lado possa haver quem considere essas festas um exemplo de Democracia, provavelmente o inverso não ocorreria, tratando-se a Democracia como sinônimo desses eventos. Festas populares são maravilhosa expressão do povo, ocorridas em datas e eventos hábeis a permitir que aflorem com todos os seus atributos e boas qualificações, não sendo, contudo, pela tolerância e liberdade comuns, essencialmente democráticos. São vantagens da Democracia, são decorrências da Democracia, são formas protegidas de manifestação e exercício da irreverência e liberdade e alegria, mas não são Democracia. O Carnaval de Veneza e a temporada alemã de piadas com políticos, além de outros carnavais mundo afora, assim como, também, os eventos de Halloween nos EUA, não são essencialmente vistos como sinonímia de Democracia. Há certo perigo nisso, talvez não claro à primeira vista. A eventual interpretação de que Carnaval é Democracia pode gerar a ideia de que esta é algo permissivo, tolerante ao extremo, indulgente, um tipo de “vale tudo” – adjetivo que, convenhamos, pode servir para o bem ou para o mal. A liberdade nos festejos de Carnaval não também tem as suas regras, como, por exemplo, aquelas relativas ao tempo dos desfiles e à pontuação para a escolha das campeãs. Isso, por si só, nega a ideia de que o “vale tudo” não é pleno e que não é de anarquia que se trata. A Democracia tem regras e tem liberdade, tendo liberdade porque tem regras.