Quando comecei o curso de Letras na Universidade Estadual de Feira de Santana, não sabia de antemão o que me aguardava. Olhei a grade do curso do primeiro semestre e vi o nome de algumas disciplinas, as quais eu nunca imaginava estudar: Linguística I, Antropologia, Metodologia do Trabalho Científico, etc. Mas havia uma que me chamou a atenção: Literatura I. Não sei o porquê desse sentimento, um misto de curiosidade e mistério que me tomava o pensamento. Até porque o professor da disciplina seria Roberval Pereyr, um escritor baiano muito falado na universidade, ora pelo seu talento literário, ora pela figura do professor.
Então, chegou o dia da primeira aula de literatura. Eu estava ali sentado, cheio de expectativa para navegar pelos mistérios da literatura, adentrar nesse mundo cheio de subjetividade, mas pasmem: Eu digo isso agora, pois quando comecei meus estudos universitários, tudo era uma incógnita para mim, eu não sabia de nada, não tinha ainda escrito nada e, muito menos, sonhava em ser escritor. Verdadeiramente, um mundo completamente misterioso e cheio de surpresas, pelo qual eu estava disposto a viajar.
Logo que iniciou a aula, o professor Roberval olhou para a turma e disse:
— O poeta é um fingidor, finge tão complemente, que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente.
Eu não conhecia esses versos e, muito menos, a pessoa que os tinha escrito. Olhem que curioso! Eu não sabia que a pessoa se tratava do Pessoa, o próprio Fernando Pessoa. Lógico que agora eu o conheço, aliás, as suas obras e biografia.
— Alguém poderia me dizer o que esses versos querem dizer?, perguntou o professor Roberval.
Todos ficaram calados, espantados, olhando para ele. Aquele emudecimento fez-me ver que a poesia é um oceano navegado por poucos, pois, tendo guardado aqueles versos simples, passei a me debruçar sobre os seus mistérios.
O poema não era tão grande, mas me emocionou bastante. Lembro-me sempre dele, numa viagem, quando explico sobre poesia, quando o tédio me toma, assim tento sussurrá-los para mim, mesmo nesses momentos entediantes da vida. Eles produzem em mim uma espécie de consolo e de saudade de coisas que eu não sei.
Contudo, eles me causaram um efeito extraordinário e me trouxeram uma indagação que sempre me faz refletir: De onde vem o efeito poético?
Talvez alguém diga que vem do sentido dos versos, mas não é apenas do sentido, creio eu, pois se ele dissesse:
O poeta gosta de fingir… não acredito que o poema pudesse me impressionar. Se, no lugar de usar o verbo ser no presente, ele usasse no passado, enfraqueceria tudo.
Penso no ritmo, ele sozinho não dá para explicar nada. Além disso, as palavras usadas são simplesmente banais dentro da língua. Tudo está dito com os elementos mais simples: é, fingidor, finge, dor, sente, completamente.
Reparem nestes pequenos versos de Roberval Pereyr, todos eles construídos a partir de palavras muito corriqueiras da língua portuguesa.
“Meus pensamentos são meus camelos, meus pensamentos são meus cavalos”.
Na minha opinião, o que impressiona mesmo é a faculdade de dar um sentido solene e alto às palavras de todo dia. Nesse poema incrível, a ideia do “Pensamento” é também um motivo de emoção, pois se há algo tão simples e primitivo, isso se chama: pensamento. Talvez isso me emocionou tanto, pelo fato de que o pensamento faz parte do meu cotidiano.
O verdadeiro poeta tem o dom de trabalhar a palavra de forma que ela cause efeitos dentro do próprio leitor.
O principal sentido dos versos é o pensamento, um pensamento que é bom, não esse “pensamento qualquer” de hoje em dia. O desejo de fazer algo simples, honrado e belo, e imaginar que já se fez.
Não há beleza em um amontoado de tijolos, mas sim na casa da qual eles farão parte, após um projeto de um bom arquiteto.
Troque-se tijolos por palavras, ponha-se o poeta, subjetivamente, na quádrupla função de engenheiro, arquiteto, construtor e operário, e aí tens o que é Poesia.
O material do poeta é a vida. Isso faz com que a poesia seja a mais humilde das artes e, como tal, a mais heroica, pois isso determina que o poeta constitua a lenha preferida para a lareira do alheio. Para o poeta a vida é eterna, ele vive no vórtice dessas contradições que o torna, individualmente, um ser em constante busca do absoluto e socialmente, um revoltado permanente. Daí não haver por que estranhar o fato de ser a poesia, para efeitos domésticos, a filha pobre na família das artes e um elemento de perturbação da ordem dentro da sociedade tal como está constituída.
O poeta é um criador, um estruturador de línguas e pai da filha mais pobre da família da arte, mas muito valorosa, cujo valor fica escondido no nicho do olhar daqueles que a ela pouco olham.
Apesar de ser a poesia uma joia de valor inestimável, ela não é algo que se possa trocar usualmente por dinheiro; pendurar na parede como um quadro; colocar num jardim como uma escultura; por no toca-discos como uma sinfonia; transportar para tela como um conto ou novela ou romance. Modigliani, que se fosse vivo seria multimilionário como Pablo Picasso, podia, na época em que morria de fome, trocar uma tela por um prato de comida. Muitos artistas plásticos, ou fizeram antes e depois dele, mas acho difícil que um poeta possa jamais conseguir o seu filé em troca de um soneto ou de uma poesia de cordel. Por isso, parece-me que a maior beleza dessa arte modesta e heroica seja a sua aparente inutilidade. Isso dá ao verdadeiro poeta forças para jamais se comprometer com os donos da vida, pois seu único padrão é a própria vida, a vida dos homens em sua longa luta contra a natureza e contra a si mesmo.
Conversando com Raquel de Queiroz, ela me disse:
— Há muitas espécies de poesia deste mundo de poetas. E diz-se mesmo que tudo pode ser poesia. Mas, na verdade, a poesia que a gente realmente ama, a que nos vai correndo ao coração, é aquela poesia direta e simples e, acima de tudo, cantante, que flui como uma melodia do peito do poeta para o peito da gente; poesia que se lê ou se escuta batendo a cadência com a cabeça, embalado pela cantiga, ninado pelas palavras que nos falam de coisas amadas, lembranças saudosas, alegrias e tristezas comuns a toda condição humana.
Atualmente, diz-se que estamos sobrevoando os ares da literatura contemporânea, cujas características estão relacionadas com o movimento modernista, por exemplo, a ruptura com os valores tradicionais. Entretanto, a identidade nesse momento não é mais uma busca, sendo revelada por uma crise existencial do homem pós-moderno. Neste ambiente confortável, no qual, para muitos, é uma ruptura de estilos do passado com a liberdade poética do presente, (não é nada mais do que um mix de estilos dentro de uma liberdade criativa maior) encontramos vários poetas desnudando-se sobre o seu próprio estilo, ora romântico, realista, parnasiano, gótico, etc.
Aí temos Roberval Pereyr, Arnaldo Antunes, Antônio Brasileiro, Evaristo Conceição, Teia Alves, Jorge A. M. Maia, Leandro Guerreiro, Lu Moraes, Di Poeta, Braulino Magno, Hélio Santos, entre outros. O Brasil está muito bem servido no campo literário, ou servindo, como prato principal, grandes poemas temperados com uma deliciosa poesia.
VISÃO DE ONDE NÃO ENTRO
A palavra é carne que sangra:
é a vida em movimento
dentro do poeta,
dando voz ao seu silêncio.
Jorge A. M. Maia