O Brasil possui hoje um dos maiores números de faculdades de medicina do mundo, ficando atrás apenas da Índia — país com mais de 1,4 bilhão de habitantes. Segundo o Censo da Educação Superior de 2023, são cerca de 389 cursos de medicina no Brasil, contra 392 na Índia. Trata-se de um crescimento claramente desordenado, especialmente quando consideramos a desproporção populacional entre os dois países.
Em 2024, o Brasil já contava com aproximadamente 575 mil médicos, o que equivale a uma densidade de 2,81 profissionais por mil habitantes — superior à de países como China, Japão e até mesmo os Estados Unidos. No entanto, essa aparente vantagem numérica esconde um problema estrutural grave: não há professores suficientemente qualificados para tantas faculdades, tampouco vagas de residência médica em número suficiente para absorver essa crescente massa de formandos.
O problema da saúde no Brasil, como o próprio Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Associação Médica Brasileira (AMB) já apontaram, não é a ausência de médicos — e sim sua má distribuição, a escassez de especialistas em áreas críticas, a falta de estrutura nos serviços de saúde, o crescimento desordenado das escolas médicas, a precarização dos vínculos de trabalho, a gestão ineficiente e a politização da saúde.
Os dados regionais deixam a má distribuição dos médicos pelo Brasil bem evidente: enquanto o Sudeste apresenta uma média de 3,76 médicos por mil habitantes, o Norte possui 1,73 e o Nordeste, 2,22. Concurso público para médico é raro no Norte e no Nordeste, e as vagas de residência médica nessas regiões são insuficientes para fixar os profissionais.
Para justificar que quantidade não indica melhor assistência, costumo citar Copacabana, no Rio de Janeiro — onde vivi e trabalhei — como um retrato do paradoxo nacional: mesmo com alta concentração de médicos, um idoso que sofre uma fratura de quadril pode aguardar meses por uma prótese no SUS. Isso revela que a saúde pública exige muito mais do que quantidade de profissionais; exige estrutura, acesso, boa formação e organização do sistema.
Mas a falta de estrutura não é exclusiva da medicina. A odontologia, por exemplo, enfrenta desafios semelhantes: em muitos municípios, extrair um dente ou realizar um tratamento de canal pelo SUS ainda é uma missão quase impossível.
Esse descompasso entre quantidade e qualidade está em todas as áreas da saúde. Recentemente, presenciei um profissional não médico da assistência, recém-formado, em uma unidade de saúde, que não sabia calcular a taxa de infusão de soro a 26 gotas por minuto — algo elementar para a prática hospitalar.
Na medicina, vemos hoje um fenômeno preocupante: muitos profissionais parecem inseguros diante da própria capacidade clínica, recorrendo a uma avalanche de exames complementares sem o devido critério. Em meu consultório, é comum solicitar que pacientes tragam exames realizados recentemente por outros médicos — o que poupa tempo, evita desperdícios e permite decisões mais assertivas. Uma boa consulta começa com escuta atenta, exame físico detalhado e solicitação criteriosa de exames. Exames mal indicados confundem mais do que ajudam.
Mesmo na reumatologia — especialidade que lida com doenças autoimunes complexas e exige apoio laboratorial e de imagem — frequentemente nos surpreendemos com a quantidade de exames desnecessários trazidos por pacientes após consultas rotineiras. Isso transmite uma falsa sensação de segurança e, por vezes, atrasa o diagnóstico correto.
Qual o sentido de solicitar repetidamente dosagens de magnésio, boro, zinco ou vitamina C em mulheres jovens e saudáveis? Ou pedir testes imunológicos e genéticos de alto custo antes de uma cirurgia plástica eletiva — muitas vezes de difícil interpretação para um cirurgião? Agora, tornou-se moda solicitar dosagens repetidas de testosterona em mulheres jovens sem qualquer indicação clínica — desperdício puro. Testosterona é um hormônio masculino; na mulher jovem e saudável, seus níveis são naturalmente baixos.
Além de ineficazes, esses exames geram custos desnecessários para os pacientes, sobrecarregam o Sistema Único de Saúde e contribuem para o reajuste crescente das mensalidades dos planos privados.
Médicos devem tratar pessoas, não exames. Investigações laboratoriais bem indicadas — como hemograma, glicemia, colesterol, Papanicolau e PSA — são fundamentais na detecção precoce de doenças prevalentes, como diabetes, câncer de colo uterino e de próstata, e devem ser valorizadas. Essa minha análise crítica não se dirige contra a autonomia médica, que é um dos pilares sagrados da medicina e deve ser preservada, mas ao uso inadequado dessa autonomia, que onera os pacientes, não traz resultados e não gera uma boa prática clínica.
Esse debate precisa ser ampliado no meio médico, incorporado às faculdades, aos programas de residência e à formação ética dos médicos que atuarão nos estados mais carentes, como o Amapá.
Atualmente, temos duas escolas médicas no estado — a pública Universidade Federal do Amapá (UNIFAP) e a recém-inaugurada Faculdade Integrada. Ambas têm o potencial de formar profissionais éticos, capacitados e socialmente conscientes. As duas instituições são suficientes para fornecer novos profissionais para nosso estado. Cabe a nós, médicos, ao Conselho Regional de Medicina, à Associação Médica, à Academia Amapaense de Medicina e aos dedicados docentes contribuir com essa formação, levando nossa vivência prática e nossa responsabilidade à sala de aula e às autoridades responsáveis por políticas do setor.
Dr. Marco Túlio Franco
CRM-AP 994 | RQE 204
Médico Reumatologista, Conselheiro do CRM-AP, Coordenador da Comissão de Ética Médica da Sociedade Brasileira de Reumatologia e Membro da Academia Amapaense de Medicina.