Eu fui uma criança nos anos 2000. Era legal demais! Barbie e Polly com todas as casinhas e carrinhos possíveis, roupinhas e sapatinhos e mil acessórios para aprimorar as narrativas que inventava. Andava de bicicleta, carrinho de pedal, patinete e patins -que nunca realmente aprendi a andar. Joguinho no computador era o antigo Coelhinho Sabido e, mais tarde, The Sims. Eu e minha irmã tínhamos uma coleção de fantasias e a gente passava horas do dia vestidas de princesas da Disney.
Lembro bem de, aos domingos, acordar e já descer as escadas com o som dos carros a 300km nas pistas. Isso indicava uma coisa: meus avós estavam de visita e meus pais estavam sentados na sala junto deles, assistindo Fórmula 1.
A vida, na infância, tinha gosto doce, leve e feliz. Outro dia até me peguei pensando em como eu e minha irmã tínhamos o costume de inventar as próprias brincadeiras e curtir muito o dia juntas. Quando a gente é criança, a gente cria coisas o tempo inteiro… A vida e as pessoas nos dão permissão para um mundo lúdico, protegido, onde a imaginação pode percorrer mundos.
Crianças pequenas criam o próprio vocabulário a fim de se comunicar, vencem os medos para conseguir dar os primeiros passos, inventam as próprias brincadeiras ou jeitos de brincar, pintam, desenham e criam o próprio universo colorido.
As aulas de artes na escola, quando eu era pequena, proporcionaram momentos para desenvolver habilidades motoras e explorar a criatividade, o senso de individualidade e a importância de trabalhos e ações em grupo. Ainda com poucos anos de vida, a gente já começa a não ter mais espaço para inventar as próprias palavras, dançar sozinhos do nada ou brincar de colorir. Começamos a perder a liberdade e a espontaneidade e, então, as coisas começam a perder a graça.
Mais velha, até a aula de artes, que era um portal para a imaginação, passa a ser teórica. Eu amava a aula de artes, nas duas fases… Acho que não foi à toa que virei Historiadora da Arte! Contudo, a gente sabe que esse momento de incentivar o desenvolvimento criativo é importante, especialmente hoje em dia, com crianças passando horas e mais horas na frente dos computadores, tablets e celulares.
Com o passar dos anos, a vida começa a podar a gente e nos tira essa liberdade criativa que é tão primitiva. Aprendemos, socialmente, que só pode cantar quem sabe cantar bem e isso quase sempre vai impedir quem não canta bem de se divertir com os amigos numa noite de brincadeiras. Isso vale para muitas outras coisas.
Acho que o pior aqui nem é isso, até porque existem mesmo muitas coisas que a gente só pode realmente fazer se souber ou se tiver estudado para tal, mas sim o fato de que nos ensinam que devemos fazer uma coisa só, sermos especialistas, olhar para um só caminho e seguir nele até o final.
A gente cresce olhando para grandes nomes da história mundial e esquece que a maioria deles era multipotencial. Como exemplo, temos Da Vinci, que era engenheiro, matemático, pintor, escultor, arquiteto, poeta, músico e outras coisas.
Vasari, no famoso livro sobre a vida dos artistas, diz que Da Vinci “não exerceu uma profissão apenas, mas todas aquelas em que o desenho intervinha” e acrescenta que, “tendo um intelecto tão divino e maravilhoso e sendo ótimo em geometria, não só trabalhou em escultura e arquitetura, mas desejou atuar na pintura”
Quando nos falam que precisamos trilhar apenas um caminho, nos falam indiretamente que precisamos matar dentro de nós todos os gostos que coexistem, aquilo que existe em paralelo, apagar todas as faíscas de criatividade, de instinto, de alegria.
Acho que somos feitos para explorar várias paixões e não só um caminho. A vida não é uma linha reta e pode ser preenchida por coisas acontecendo em paralelo, sempre que possível. Claro que quem é artista vai ter uma relação diferente com tudo isso, mas o meu ponto é que a humanidade não pode esquecer de se permitir criar, imaginar e ser vulnerável nas escolhas. Quando nos damos essa liberdade de ser criativos, de fazer coisas não apenas pensando no mercado de trabalho, mas também construindo hobbies saudáveis, abrimos espaço para a criatividade florescer e para a vida se tornar mais rica e cheia de significado.
Antes, a gente criava porque criar simplesmente faz parte do existir. Depois, a gente passa a não ser estimulado e aí passa a não querer mais. Ou, muitas vezes, deixamos de criar coisas porque simplesmente não nos resta tempo para isso, porque a vida adulta exige muito da gente.
Acho que a grande questão não é quando deixamos de criar, mas por qual razão isso aconteceu. É como se, em algum momento, passássemos a acreditar que criar não é mais necessário, que brincar é coisa de criança e que imaginar é uma grande perda de tempo. A vida adulta vai nos cobrindo com camadas de exigência, com uma rotina que muitas vezes a gente não consegue dar conta e nos cobra produtividade, respostas.
A criatividade não desaparece, mas ela pode vir a adormecer. Acordá-la, porém, pode ser um gesto de resistência, um reencontro com a parte mais viva de nós mesmos e a solução para muitos dos problemas que encontramos quando adultos.
Baudelaire, em O Pintor da Vida Moderna, fala sobre uma coisa que eu nunca mais me esqueci desde a primeira vez que li: o gênio é aquele que trabalha a criança interior, tendo a infância redescoberta.
Ele diz que a criança está sempre embriagada pelo novo, porque enxerga tudo como uma grande novidade e afirma que a inspiração é como um acúmulo de sensações, como se o momento de inspiração fosse um momento de sobrecarga emocional ou cerebral, em que “todo pensamento sublime é acompanhado de um estremecimento nervoso, mais ou menos intenso, que repercute até no cerebelo.”
Ele diz que, num adulto criativo, a razão ganhou um lugar considerável, ao passo que, na criança, a sensibilidade ocupa quase todo o ser e que “o gênio é somente a infância redescoberta sem limites”, que a curiosidade profunda e alegre que a gente atribui às crianças é que, quando adultos, faz de nós bons artistas.
Para fechar, eu queria dizer que é necessário, para cada um de nós, continuar vendo a vida com esse olhar de criança, de quem vê novidade ao redor e espera alguma coisa à mais da vida. Não podemos nos acostumar com a possibilidade de sermos seres não criativos, porque isso torna a gente significativamente pessoas deprimidas.
O mundo já é difícil e exige, muitas vezes, uma força sobrenatural para que consigamos nos manter de pé. A ludicidade do universo das crianças as faz mais felizes. A permissividade em relação a criatividade e imaginação, as faz mais saudáveis. Desejo que nós, adultos, possamos nos parecer mais como crianças. Acredito que, se conseguirmos explorar a criatividade no meio do caminho da vida e exercitar esse olhar da infância, que extrapola os limites da razão, podemos ser um pouquinho
A vida só tem graça com o olhar da criança dentro de nós
