“Somos, todos, filhos do pelourinho e do açoite”
C. L
Há expressões que resistem ao tempo não porque são belas, mas porque servem a um projeto. “Alma branca” é uma delas. Nasceu do imaginário colonial, cresceu nutrida pela ideologia do branqueamento e sobrevive, ainda hoje, como elogio mal disfarçado. Por trás da gentileza, há uma pedagogia silenciosa: a de que o bem, o correto e o civilizado carregam uma cor específica — e ela não é a da maioria do povo brasileiro.
Aceitar esse elogio é, em alguma medida, ceder terreno ao apagamento. A palavra parece inofensiva, mas embute uma hierarquia: a tentativa de descolar o negro de si mesmo, de oferecer a ele um espelho embranquecido, como se sua humanidade dependesse dessa concessão.
A resposta histórica a essa lógica é a consciência negra. E ela não surge como ornamento identitário; surge como movimento político, filosófico e ético. Surge quando o negro deixa de medir seu valor pela régua do outro.
Frantz Fanon foi direto: “enquanto a brancura for sinal de ascensão, a mente negra permanecerá colonizada”. A consciência negra, para ele, é a ruptura com essa fantasia, o gesto que rejeita o ideal do opressor como modelo de humanidade.
Malcolm X, por sua vez, expôs o custo dessa cordialidade racial. “Alma branca” é, em sua lógica, “o convite sedutor que desmobiliza o oprimido”. Ao tentar ser aceito pela branquitude, o negro perde a potência da denúncia. A consciência negra é a recusa estratégica: é a reafirmação de si como centro político, e não como cópia palatável.
Angela Davis critica a neutralidade racial que muitas vezes acompanha a ideia de “cor da alma”. Para ela, essa aparente elevação moral serve apenas para esconder as estruturas de desigualdade. A consciência negra, em contrapartida, ilumina essas estruturas e exige enfrentamento, não frases de efeito.
No Brasil, Abdias Nascimento compreendeu cedo que a branquitude precisava de mitos para manter seu projeto. A “alma branca” é um deles: a promessa de aceitação desde que o negro abandone sua ancestralidade. Abdias respondeu com o quilombo como símbolo político — “não uma fuga, mas um projeto de nação”.
Lélia Gonzalez ampliou esse debate ao cotidiano. Nomeou o desejo de embranquecimento como “neurose da branquitude” e afirmou que “a consciência negra é, antes de tudo, gesto de saúde mental. É a recusa a apagar sotaques, cabelos, histórias e identidades para caber em molduras alheias”.
Entre “alma branca” e “consciência negra”, portanto, não há equivalência possível. O primeiro é um elogio que infantiliza; o segundo, um horizonte que emancipa. Um conserva privilégios; o outro desafia estruturas. Um agrada. O outro transforma.
Num país que ainda evita encarar sua própria história, talvez seja hora de abandonar as metáforas adocicadas. Não precisamos de “almas brancas”.
Precisamos de consciências negras — atentas, críticas, vivas — para que o Brasil finalmente se pareça com o povo que o construiu.
Carlos Lobato
Jornalista, Advogado, Sociólogo e Psicólogo

