Visitei Canudos! Visitei, mais de uma vez. Não o fiz apenas mergulhando na obra literária de Euclides da Cunha ou nos cordéis, poesias e prosas de outros autores. Conheci a Canudos verdadeira, nas vezes em que lá estive e devo registrar a emoção sentida quando os meus pés pisaram naquela terra e, num abraço misterioso, senti o envolvimento do vento quente, que soprava história.
Canudos não é imagem parada no tempo. Canudos não é quadro pendurado na parede da história do nosso país. Tudo ali é presente. Ainda hoje há fragmentos de ossos humanos, balas não deflagradas e capsulas vazias, verdadeiros ecos ressoando no presente. Assusta ainda se encontrar dessas coisas, que gritam os horrores ali vividos, mesmo após tantos anos e o muito que já foi recolhido por curiosos e pesquisadores. A propósito, que fique claro, essas contemporâneas descobertas não exigem garimpos nos profundos veios das terras sertanejas, pois estão logo na superfície, apenas ancoradas na terra ou amparadas sob arbustos retorcidos – lavados pela chuva escassa e pelo passar do longo tempo, pois não mais ostentam as manchas de sangue e as lágrimas de dor.
Marcado está o local onde ficava a matadeira, apelido do imenso canhão de guerra que foi levado pelo Exército para matar brasileiros. Identificados estão locais onde ficavam o hospital, o banco de sangue, os acampamentos e os demais canhões. Somente olhando ao longe, até onde o olhar humano se perde no horizonte, se consegue alcançar a dimensão de tudo aquilo e as regiões onde se instalaram tropas e ficava a vila. Fico imaginando como era nos idos de 1896 e 1897.
Lamento que não se possa visitar o local onde ficava o centro da vila e das batalhas, já que está sob as águas do imenso lago formado pelo Açude Cocorobó, cuja construção foi iniciada no ano de 1951. Imagino, contudo, que essas águas tiveram outra função, menos festejada, nobre e falada, pois serviu para cobrir a vergonha que foi o episódio.
Alguns corpos foram enterrados, enquanto muitos foram jogados em valas ou simplesmente deixados naqueles terrenos. O corpo do Coronel Moreira César também ficou largado e, no local, se erigiu marco, que se diferencia do tratamento dispensado aos cadáveres, inteiros ou mutilados, dos que pereceram no anonimato. Foi uma guerra total, de brasileiros contra brasileiros: Josés contra Josés, Beneditos contra Beneditos, Jõoes contra Jõoes! Puderam ser adversários ou inimigos na guerra, mas se uniram no mesmo destino e abandono.
De Guerra, tradicional, nada houve naquelas paragens – embora, de batalhas com forças militares contra o próprio povo, de tudo tenha havido: degolas e tiros – de revólveres, espingardas e… canhões! Para o local, foi disponibilizado metade do contingente militar do Brasil, do mesmo Exército que, alguns anos antes, saiu vitorioso da Guerra do Paraguai e se pensava que os herdeiros da vitoriosa guerra não poderiam ser derrotados naquela aventura nos sertões baianos, contra um beato e sua gente! Ocorre que Canudos era, na época, o segundo maior agrupamento humano e urbano, da Bahia: 6.500 construções e casas habitadas por cerca de 25.000 pessoas. Maior, só a Capital, Salvador. Hoje, vivem 16.000 pessoas em Canudos.
O Exército foi derrotado em três expedições e, na 4ª, partiu com tudo contra Canudos e sua gente. Foram 11 mil militares lutando, dos quais 5 mil morreram no local. No total, em Canudos houve 25 mil mortes, dos dois lados, numa guerra total, sem tréguas, num contexto onde os verbos mais comuns eram matar, atirar, disparar, degolar, atacar, defender e morrer… e, nas entrelinhas, enquanto possível, sobreviver.
Muitos militares morriam à distância, por tiros dirigidos na direção do brilho dos botões e insígnias dos seus uniformes. O povo morria à distância, pelo descarrego exagerado de munição, a esmo, além dos tiros de canhão… e das degolas dos que eram feitos prisioneiros – inclusive dos muitos que, ao final, se renderam e foram capturados, com maioria de mulheres e crianças. A distância e o isolamento contribuíram para que, nas suas conversas, os combatentes falassem as palavras “quando eu voltar ao Brasil” para se referir ao que fariam se sobrevivessem à guerra, pois viam o sertão como lugar tão isolado que não o identificavam como parte da sua pátria. Isso contribuiu para a formação do imaginário quanto à natureza dos inimigos, que não consideravam sequer brasileiros!
Embora a Constituição de 1891, em seu art. 48, inciso 7º, estabelecesse que ao Presidente da República competia, privativamente, “declarar a guerra e fazer a paz”, não se identificou esse ato formal, talvez pelo simples fato jurídico-político de que não se poderia fazer essa declaração contra o povo – o mesmo que os militares deveriam proteger contra hipotéticas invasões estrangeiras. Aliás, também não se instituiu comenda comemorativa alusiva à vitória em Canudos. Tudo ocorreu como algo impensável e maculado, das origens ao desfecho. O desenrolar dos enredos iria para a história sem detalhados registros, havendo apenas poucas superficiais e tendenciosas notas em jornais da época… até que fosse, anos depois, em 1902, publicada a primorosa obra de Euclides da Cunha: Os Sertões.
O Exército não foi para uma guerra clássica, contra inimigo externo. Foi para a batalha tão bem armado quanto desprovido de regras. Não haveria perdão ou sobreviventes. Seria uma guerra total, verdadeiro massacre, contra a imensa massa de brasileiros reunida pacificamente em torno de Antônio Conselheiro, um dos muitos beatos que falavam diretamente ao povo abandonado pelos governos, coronéis e Igreja. Gente brasileira que, de tão excluída, só poderia buscar apoio junto aos que lhes olhassem nos olhos. Antônio Conselheiro não agia como padre ordenado ou querendo a estes substituir, mas como gente do povo, falando para a gente do povo, com a linguagem do povo, usando a Bíblia e o caderno com as suas anotações sobre o Livro Sagrado e autores cristãos. Para se entender o contexto de Antônio Conselheiro e de Canudos, é necessário que se compreenda que havia muitos beatos pregadores naquela época e se avaliar as obras (não os mitos) do Padre Cícero e do Padre Ibiapina, as suas ações em prol do povo abandonado daquelas paragens e a construção das casas de caridade.
Recentemente, o nome de Antônio Conselheiro foi incluído no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, pela Lei nº 13.829, de 13 de maio de 2019, promulgada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República Jair Bolsonaro.
Também é preciso registrar dois (2) pontos fundamentais. Em primeiro lugar, Conselheiro pagou por madeira, para a construção de igreja. Esta não lhe foi entregue. A fofoca transformou a busca por solução da questão numa resistência à República recém instalada, cuja capital ficava na longínqua cidade do Rio de Janeiro. Contribuiu para isso a maledicência, a soberba, a ganância e a sanha de coronéis que não queriam perder mão de obra barata, numa época em que a escravidão já havia acabado e que ainda não se admitia a liberdade de escolha do próprio destino.
A segunda questão é que não se pode olhar o acontecido com os olhos e a mente dos que vivem em 2025, com luz elétrica, rodovias, leis trabalhistas e o encurtar das distâncias culturais e históricas. Notadamente no dito interior do Brasil, reinavam os jagunços e os pagos pelos coronéis. A República recém fundada, após a doce e inesperada Proclamação da República, sofreu resistência de movimentos que ocorriam no Rio de Janeiro (capital do país, na época), Mato Grosso, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, sendo conveniente deixar bem claro que – estes – não tiveram o mesmo destino, o que demonstra que Canudos foi escolhida para servir de exemplo para essas irrupções políticas.
Visitei Canudos e das vezes que lá fui não encontrei um cenário de natureza morta. Encontrei gente, viva. Talvez alguns se surpreendam, mas em Canudos não há só o cenário das guerras e batalhas ali travadas, do mesmo modo que na Floresta Amazônica não há apenas florestas e rios. Tem gente na Amazônia. Do mesmo modo, tem gente em Canudos e orgulhosa por descender daquela história e se sentindo injustiçada e querendo reparação histórica. Tem gente com quem conversei e fiz amizade. Dominam a história oral, porque fazem parte dela. Para muitos, o local é um tipo de quintal, onde cresceram e deram os primeiros passos, assim como fizeram os seus pais e avós e bisavós; assim como farão os seus filhos e netos e bisnetos. Tanto me interessei por tudo que até incentivei a formalização de museu local, como entidade cultural preservadora de parte dessa história e de memorabilia sobre os acontecimentos. A documentação está sendo elaborada e me orgulho de estar ajudando a alavancar esse ponto de referência cultural e histórico.
Na região, a guerra não se foi, simplesmente, porquanto ali ecoa. Não é mera página empoeirada da história nacional. Ali há história viva, o passado se faz presente e as coisas ainda não foram esgotadas, pois estão sendo construídas, entrelaçadas, descobertas, revisitadas, lembradas e valorizadas. Canudos está acontecendo, a cada dia.
CANUDOS: MORTE E VIDA!
