A operação policial que transformou os complexos da Penha e do Alemão em zona de guerra, resultando em mais de uma centena de mortos, revelou mais do que uma tragédia urbana: expôs um modelo de Estado que confunde segurança com extermínio. Como afirma Luiz Eduardo Soares, trata-se de uma “crise estrutural da segurança cidadã”, baseada na necropolítica — conceito formulado por Achille Mbembe para descrever o poder de decidir quem pode viver e quem deve morrer. A periferia torna-se o “fora da lei” literal, um território de exceção onde, como assinala Giorgio Agamben, o cidadão é reduzido à “vida nua”, vulnerável à suspensão das garantias constitucionais. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública evidenciam que o Brasil figura entre os países com maior letalidade policial do planeta, sintoma de uma política que normalizou o assassinato como ferramenta de governabilidade.
Sob a ótica sociológica, a crítica acadêmica converge. Michel Misse, em sua teoria da “mercadoria política”, demonstra que o crime organizado opera em simbiose com as estruturas do próprio Estado — polícias corruptas, agentes públicos e redes de poder que transformam a violência em moeda. Ignacio Cano e José Cláudio Alves reforçam que operações espetaculares, longe de enfraquecer facções, produzem uma pedagogia do medo: o Estado “ensina” pela bala e, paradoxalmente, fortalece a economia ilegal que diz combater. A favela, convertida em laboratório bélico, substitui políticas de inteligência, prevenção e cidadania por incursões militarizadas que legitimam o controle armado como modo de gestão da pobreza. Assim, o Estado Democrático de Direito é corroído por dentro, substituído por uma soberania policial que age fora da Constituição.
A reação política ao massacre, entretanto, foi além do campo da segurança. Ao propor que facções criminosas sejam classificadas como organizações terroristas, setores da extrema direita transformaram o debate em trincheira ideológica. Segundo Christian Lynch, essa é a lógica da “securitização da política”: converter problemas sociais em ameaças existenciais para justificar medidas de exceção. Leonardo Avritzer observa que esse discurso, ao redefinir o inimigo interno, visa recentralizar o poder em torno de uma ordem autoritária travestida de moralidade. Juristas como Ricardo Lewandowski, Juarez Tavares e Celso Lafer alertam que o conceito jurídico de terrorismo pressupõe motivação política e simbólica — não meramente econômica —, e sua deturpação serve a propósitos de alinhamento ideológico com potências externas.
A dimensão geopolítica dessa retórica é inegável. Equiparar o crime organizado ao terrorismo internacional introduz no debate brasileiro a lógica pós-11 de setembro, descrita por Noam Chomsky e Zygmunt Bauman como a “economia do medo global”. Sob o pretexto de cooperação internacional, pavimenta-se a possibilidade de ingerência estrangeira nas políticas de segurança e soberania nacional. Wanderley Guilherme dos Santos advertia que o autoritarismo raramente retorna com fardas: ele reaparece travestido de tutela, parceria e salvação. O desafio brasileiro, portanto, é civilizacional: resistir à tentação da exceção e reafirmar a centralidade da vida, da justiça social e do controle democrático da força. O massacre do Rio não é apenas um episódio policial é, antes de tudo, um espelho das escolhas civilizatórias que o país precisa fazer.

