O rolo da câmera do meu celular fica sempre cheio de fotos. De tempos em tempos, preciso organizá-las numa nuvem, excluir coisas que não importam, agrupar as fotos de cada viagem e datas especiais em pastas próprias… deixo aquilo que precisa ficar.
De fato, registro muito com o celular, de coisas importantes a coisas sem importância nenhuma… Acho que é um “mal” da minha geração, que tem o celular como extensão do corpo e da memória, que tira a fotografia desse lugar simbólico e do afeto e a relaciona com o prático, com o utilitário, já que é tão simples acessar a câmera e os registros, a qualquer momento.
Eu fotografo muitas coisas, como disse. Pode ser a imagem de uma cena bonita com a qual me deparei pelo caminho do ponto de ônibus ou uma flor se abrindo por entre rachaduras da calçada. Pode ser uma obra de arte que vi em um museu, uma cena bonita de pessoas jogando na orla da praia, o nascer do sol ou as pessoas que eu amo. Um cachorro na rua, um grafite na esquina registrando uma frase ou desenho interessante, o meu café da manhã especial em alguma padaria diferente, um encontro com as amigas, a copa das árvores, a torre da igreja no centro da cidade…
Também, um livro que vi numa livraria e quero pesquisar a respeito depois, um sapato diferente que vi numa vitrine e quero mostrar para uma amiga, um carro bonito que passou na rua, um documento que não posso perder ou esquecer… A verdade é que a gente está quase sempre com o celular por perto e isso torna muito mais fácil o gesto de fotografar. Gosto de usar o termo “documentar a vida” porque, no fim, a gente está é registrando ela acontecendo. Sem poses, sem filtros, sem encenação.
Enquanto artista visual, que trabalha com fotografia fineart e utiliza câmeras e lentes de ótima qualidade, sinto uma diferença gigantesca na maneira que me relaciono com o que registro com a câmera e com o que registro com o celular, mesmo que eu sempre tenha um olhar apurado para o mundo… Dominar a câmera me permite coisas que o celular não proporciona. Porém, o celular possibilita um imediatismo e uma informalidade que são legais também.
Eu gosto desta fotografia “informal”, mas quando existe algum sentido ou intenção. Acho que pode ser uma forma de criar a narrativa do meu tempo. Por exemplo: passei uns dias hospedada na casa da minha irmã e, numa manhã, fotografei a cachorrinha dela, com o celular mesmo, despretensiosa. Passei a, todos os dias que fiquei lá, fotografar a cachorra dela, com diferentes luzes entrando pela porta da sala. É um dos jeitos possíveis de contar sobre as semanas que me hospedei na casa dela, sobre essa viagem que fiz para a cidade onde ela mora, sobre afeto, sobre tempo.
Quando era pequena, meus pais também registravam a vida, de um jeito diferente por conta das tecnologias e costumes da época. Não existia celulares como os de hoje e as câmeras eram analógicas, de filmes, que se precisava revelar.
Eles, contudo, nunca mediram esforços em manter esses registros acontecendo. Revelavam as imagens e colocavam em álbuns com legendas, para que soubéssemos o que se passava ali. Temos vários álbuns desses em casa, completamente preenchidos por imagens da minha infância tão cheia de felicidade, dos quais dá para sentir o amor por entre as páginas.
É uma delícia, de tempos em tempos, pegar esses álbuns e se deliciar com o que já fomos um dia. Também, com as pessoas que cruzaram nossos caminhos, com os lugares pelos quais passamos e vivemos tantos momentos. É gostoso recordar das festinhas na escola, dos amiguinhos da infância, dos animais de estimação que tínhamos, das casas que fizemos morada por longos períodos de tempo, das viagens que fazíamos em família…
Muita coisa, por conta da idade que eu tinha, hoje eu nem me lembro. Contudo, tem coisas das quais eu consigo lembrar rapidamente ao olhar para as fotos e outras que eu sei que são derivadas da famosa “memória inventada”, as memórias que eu criei por conta própria, de acordo com a fotografias e as histórias que me foram contadas.
A vida passa muito rápido, corre. O tempo escorrega por entre os dedos. Por isso, acho tão fundamental se permitir mergulhar nesses registros, nesse amor aos momentos, aos detalhes, aos sorrisos… Viver os momentos é o mais importante, mas lembrar deles é bom e tê-los registrados faz com que as memórias sejam tangíveis.
Hoje, entretanto, vemos um esvaziamento dessas imagens, desses registros, exatamente porque fotografamos qualquer coisa. Muitas vezes, inclusive, só fotografamos na intenção de postar, graças a essa sociedade performática na qual estamos inseridos, onde mostrar o que se possui, se faz e se vive é mais importante do que registrar o momento para se lembrar depois.
Na verdade, talvez a gente não esvazie os sentidos. Acho que a gente só se relaciona com o “registrar” de uma maneira muito diferente das gerações anteriores ou dos artistas, já que raramente encontramos espaço para imprimir as imagens e, de fato, eternizar esses momentos. Ou cuidar das imagens, do processo…
A gente tira a foto e imediatamente posta no story do Instagram, por exemplo. Ou passamos o dia gravando pedaços do que fazemos para, então, montar um “vlog” resumindo como foi o dia… É como se vivêssemos para se exibir para o outro! Por isso sou tão fã de viver o dia e postar depois, porque posso tirar fotos sem preocupação “estética” nesse sentido performático, tenho tempo de posteriormente selecionar o que me interessa mostrar para o outro. Daí, é possível fazer uma curadoria de tudo que foi registrado, para postar, depois de ter me permitido estar presente na vida real.
Todavia, acho que postar também é, hoje, uma forma de registrar o tempo na eternidade que ultrapassa o sentido da própria fotografia. Postagens no Instagram com 20 fotos que resumem o seu mês, representam a seleção de fotos para um álbum impresso, por exemplo. Não é a mesma coisa, até porque sai da esfera do privado ou íntimo e vai para o “público”, mas é como se fosse.
Tem gente que diz que recordar é viver, porque acessar esses bons momentos é ter a chance de ser feliz outra vez. Tem gente, por outro lado, que vai dizer que recordar é deixar de viver, já que ninguém consegue sentir verdadeiramente a dimensão da experiência que já passou e foi sentida.
Sabe aquela história de Heráclito de Éfeso, que diz que nenhum homem pode banhar-se no mesmo rio duas vezes, porque na segunda vez o rio já não é o mesmo e nem o homem? Então, é isso. A gente mudou, a gente não pode voltar no tempo e, nem se pudéssemos, seria igual. Ainda assim, vale a pena sentir um pouco do que era sentido, do amor, da alegria… Continuar registrando, mesmo que seja “apenas para postar”, porque, no fim, esses registros também valem a pena.
Documentar a vida, guardar memórias
