A Guerra-Fria, que envolvia os Estados Unidos e a União Soviética e os países satélites a cada um, terminou com a combinação de dois eventos históricos: a queda do Muro de Berlim e a dissolução da União Soviética.
Agora, muito mais do que a isolada ameaça de qualquer país à hegemonia dos Estados Unidos, parece que o BRICS animou os norte-americanos a iniciar movimento que já podemos ousar chamar de Segunda Guerra Fria.
De fato, parece que há reedição de aspectos da Guerra-Fria original neste momento, notadamente numa faceta representativa de uma dualidade entre o Ocidente e os seus valores, representados pela Europa e pelos Estados Unidos, em face dos que se alinham em torno de outras ideias e ideais, como o grupo do BRICS, com China, Rússia, Brasil, Índia e África do Sul, também com influência e pretensões de Irã, Nigéria, Argélia, Vietnã, Cazaquistão, Cuba, Bielorrússia e outros.
Isso não nega e até mantém acesa a doutrina de Mackinder e do seu Heartland, envolvendo a Eurásia como fundamental para o equilíbrio global, área que vai da Europa à Ásia: quem controlasse a região projetaria o seu poder e influência política e econômica de um lado ao outro. Em resumo, tudo continua, hoje, a passar por ali, como passava no início do Século XX, quando Mackinder sustentou o seu pensamento em conferência na londrina Real Sociedade Geográfica (Royal Geographical Society).
De qual lado estamos? Observando-se, mesmo na superficialidade os países do BRICS, parece que há convergência de pautas econômicas contra o Ocidente capitalista e as políticas sociais e econômicas da Europa continental, do Canadá, Estados Unidos e de tantos países cuja história e cultura se entrelaçam em torno da religião cristã, do catolicismo e do protestantismo e da liberdade religiosa, dos valores estruturantes da liberdade das pessoas – incluindo a liberdade de expressão – e da igualdade, da fraternidade e da propriedade privada – que foram defendidas e enaltecidas na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, no contexto da Revolução Francesa, que derrubou a tirania dos governantes autoritários e do Absolutismo.
De fato – e aqui estamos falando de história do mundo e não de qualquer faceta de preconceito ou discriminação – há países do BRICS que não primam pela democracia, pela liberdade de expressão, pela propriedade privada ou pelos valores religiosos do Ocidente, havendo mesmo alguns que sequer admitiam a religião, que já foi tida como “ópio do povo”, perseguindo fiéis e religiosos. O Irã é um dos que, consta, mais persegue cristãos no mundo (Gazeta do Povo, 09.5.2024), ao lado de Índia e Nigéria – vinculados ao BRICS – dentre outros.
Outro fator que deve ser considerado é a intolerância com homossexuais, contemporânea ou passada, em alguns dos países integrantes ou próximos ao BRICS, havendo proibição (!) no Irã, Nigéria, Egito, Arábia Saudita e Etiópia (Veja, 28.6.2021). Na Rússia, Putin introduziu nova legislação, restritiva (“A nova ofensiva de Putin contra a comunidade LGBT da Rússia”, BBCNewsBrasil, 23.1.2023, assina Will Vernon), o mesmo ocorrendo na China (“Repressão na China empurra grupos LGBT para as sombras”, BBC, 27.6.2023, assina Anabela Liang).
Ademais, há problemas com liberdade de pensamento e de manifestação, em países onde há ditadura ou tendência ditatorial e/ou onde o Estado comanda tudo. A China mantém censura (“Por ‘harmonia social’, China mantém censura sobre eventos históricos”, Veja, 16.6.2024, assina Thiago Bonfim), assim como a Rússia (“Rússia bloqueia acesso a 81 meios de comunicação europeus”, Gazeta do Povo, 25.6.2024, assina Isabella de Paula), algo comum a outros países do bloco BRICS.
Aqui, parece que muitos se esquecem de que a luta contra a censura já foi pauta política, nas lutas pela redemocratização e contra a ditadura. Esquecer disso e não lutar pela liberdade equivale a rasgar não apenas os livros de história, mas, também, a memória coletiva e a coerência do povo.
Curioso que muitos não se importem com tanta proximidade com países onde a censura e a perseguição à homossexuais e minorias ainda sejam uma constante, onde a liberdade de expressão é coibida e onde as roupas das pessoas é controlada e imposta… Seria falta de informação? Aqui, por ora, a internet ainda é livre, bastando se digitar qualquer coisa para se ter acesso às notícias, documentos, livros, revistas e vídeos…
Seriam casos de distração, de memória seletiva, de posturas para inglês ver, de falar uma coisa para as outras pessoas e agir de modo distinto?
Por vezes fica difícil se compreender tanta resistência à religião das pessoas e tanto preconceito contra quem pensa diferente de um ou de outro, porque
… a luta contra a tirania de uns não significa permissão para se agir com tirania…
… a luta contra o fascismo não nos permite agir como perseguidores…
… a luta contra o preconceito não nos autoriza a ser preconceituosos…
… a luta contra a injustiça social e má distribuição de rendas não nos concede liberdade para tomar ou furtar bens das outras pessoas ou empresas, invadir prédios públicos ou particulares ou perseguir alguém por ser rico ou ter uma condição melhor do que outras pessoas…
Fica, também, difícil se compreender resistência ou revolta contra a globalização ou o modo de vida ocidental, pautado na democracia, na liberdade de ir e vir, de expressão, de religião e de sexo, quando modelos outros de governo e de ideologias não melhoraram a vida dos que vivem em sistemas opressores, como os que vimos sob ditaduras na URSS e em tantos países, bastando exemplificar que, antes da queda do Muro de Berlim, morriam lutando pela liberdade as pessoas que tentavam fugir do regime socialista para o capitalista – não o contrário! Do mesmo modo e na mesma linha, apenas na Grande Fome, Mao Tsé-Tung levou 45 milhões de chineses à morte (“Mao e o grande salto para a fome: um catálogo de horrores”, G1-Globo, 17.4.2017, assina Luciano Trigo), enquanto Stálin respondeu pela morte de milhões de pessoas, de fome (mesmo, nua, crua e dolorosa) no Holodomor.
Aliás, para quem quiser assistir a um bom filme e ter ideia do que é a censura num país militarizado e sob ditadura, vale a pena assistir ao filme “Colheita Amarga”, de 2.017, que retrata a URSS, sob Stálin, e o já mencionado Holodomor.
Bem, já no encerramento, talvez um ditado popular esteja a contribuir para a medida tarifária excepcional dos EUA em face do Brasil: “diga-me com quem andas e te direi quem és”! Estamos ao lado de países que não estão no mesmo bloco de alinhamento na geopolítica e dimensão estratégica da Europa e dos Estados Unidos e tantos outros. Para estes, estamos do outro lado e alinhados com os integrantes do BRICS. Estaríamos, portanto, ao lado da Rússia e contra a Ucrânia, ao lado do Irã e contra Israel. Estaríamos ao lado de países com ditaduras fortes no Século XX e com pouca liberdade de ir e vir e de expressão ainda hoje, com práticas ditatoriais e repressão à homossexuais e às livres formas de pensamento e de expressão, com opressão a religiosos e fiéis, reprimindo mulheres… Repressão não combina com liberdade, repressão não combina com livre comércio, repressão não combina com poder ir e vir em paz ao trabalho, ao estudo, ao churrasquinho no final de semana ou à cervejinha na praia, no bar, na casa dos amigos… aliás, repressão também não permite a liberdade de poder se reunir sem ser controlado, vigiado e punido.
EUA x BRICS: a Segunda Guerra Fria (e nós, no meio)
