— Bom dia, meu amigo Cacique.
— Pyhareve porã, che angirũ ñe’ẽpapára. (Bom dia, meu amigo poeta)
— Ué! Ele não fala português? Por que ele falou essa língua que não é nossa? — Indagou meu amigo.
— Bem, hoje são 21 de fevereiro, o dia que foi definido pela UNESCO como o Dia Internacional da Língua Materna, e ele está usando a sua língua mãe, que é a nossa também. Você não a reconhece? — Disse-lhe eu.
— Nossa língua? Nossa língua é a Língua Portuguesa. A língua que nos foi ensinada. — Exclamou meu amigo.
— A língua que falamos e que nos foi ensinada, sim; mas a língua mãe, não. Ela foi tirada de nós, nos proibiram de conhecê-la e de ser ensinada a nós. Reflita comigo.
— Se o Brasil era terra dos indígenas e aqui eles viviam em sociedade, uma língua também já existia e era a sua língua materna. Uma língua que os amamentava, os guardava, facilitava a convivência entre eles e que precisava ser respeitada, como também, preservada como patrimônio desse povo, mas não foi.
— É necessário que se entenda que a preservação de uma língua e a preservação da memória e da cultura de um povo, e a preservação de sua identidade. Há uma perda muito grande de ensinamentos se uma língua não for passada de geração a geração.
— O que sabemos é que efeitos ideológicos do processo colonizador se materializaram em consonância com um processo de colonização linguística, que supôs a imposição de ideias linguísticas vigentes na metrópole e um ideário colonizador, enlaçando a língua originária do Brasil e a nação indígena em um projeto único.
— A colonização linguística foi da ordem de um acontecimento, produziu modificações em sistemas linguísticos que vinham se constituindo em separado e, ainda, provocou reorganizações no funcionamento linguístico das línguas, bem como rupturas em processos semânticos estabilizados. A colonização do idioma resultou de um processo histórico de encontro entre pelo menos dois imaginários linguísticos constitutivos de povos culturalmente distintos: línguas com memórias, histórias e políticas de sentidos desiguais, em condições de produção tais que uma dessas línguas, chamada de língua colonizadora, visou impor-se sobre a(s) outra(s), colonizada(s).
— Uma língua-geral foi instituída no Brasil, que ainda era colônia, e sua base era o Tupi, uma língua falada pelos Tupinambás, povos indígenas que habitavam o litoral do Brasil. O desenvolvimento dessa língua possibilitou um maior entendimento da organização social dos índios e, por conseguinte, facilitou a ação de conversão operada pelos jesuítas.
— Mas como sempre, os interesses políticos divergem sempre daquilo que pode ser salutar à sociedade. Então, o processo de extinção dessa língua ocorreu com as reformas empreendidas pelo Marquês de Pombal, ministro da coroa portuguesa no século XVIII. Um dos pontos das reformas de Pombal era a expulsão dos jesuítas das colônias portuguesas, a fim de ter maior controle institucional, já que os jesuítas tinham um grande peso na organização social do Brasil Colônia. Com a perseguição e expulsão dos jesuítas, o uso da língua-geral ficou comprometido e sua extinção foi inevitável. E parece que, desde aquela época, o Brasil já virava a “casa da mãe Joana“, um bordel da coroa Portuguesa.
— A língua geral era hegemônica, sendo usada por todas as camadas sociais, passando do domínio privado para o público e, apenas aí, encontrando alguma resistência da língua portuguesa. No espaço doméstico, as indígenas, unindo-se a portugueses e mamelucos, transmitiam por sucessivas gerações não só a língua, mas os costumes, enfim, uma cultura.
— Sabe-se, por exemplo, que o léxico de uma língua não é estático, está aberto a novas incorporações: aceita o apagamento de algumas palavras ou a substituição de outras. Esse fenômeno ocorreu (e ainda ocorre) com muita frequência no nosso idioma. É necessário que muitos de nós saibamos que há uma grandeza existente dentro das línguas originárias. Elas, por exemplo, contribuíram para o enriquecimento vocabular da botânica (nomes de plantas), da fauna (nomes de animais), da toponímia (nomes de lugares) e da onomástica (nomes de pessoas) do português do Brasil.
— Justifica-se ainda o multilinguismo com a forte influência das línguas e dialetos africanos que chegaram ao Brasil; tal influência incrementou, por exemplo, a linguagem religiosa do candomblé, uma manifestação da cultura africana. Não se pode desprezar ou desvalorizar a herança cultural e linguística deixadas pelos africanos e indígenas ao Brasil. Somos partes dessa bela e rica herança.
— Os portugueses não reconheceram nos nativos uma cultura própria. Esses colonizadores pretendiam torná-los súditos do rei de Portugal e cristãos. Eram incapazes de entender os índios e o seu contexto sociocultural, reduzindo-os à condição de selvagens, de acordo com os padrões europeus. Pensamento esse que perdura em muitas mentes até os dias atuais.
— Seria interessante se fizéssemos a nós mesmos algumas indagações: por que não há de cavar no Brasil aquele que em Portugal só vivia de sua enxada? (…) Por que há de querer mandar quem nada mais soube que obedecer? Por que há de ostentar de nobre quem sempre foi plebeu? Uma contradição absurda que beira a hipocrisia sórdida portuguesa. O oprimido tentando ser opressor.
— Poderíamos ter aprendido a dizer: “Zane Ku’em”! ao invés de: Bom dia! Ou “Rohayhu”, ao invés de: Eu amo você; “Oremomba’e”, no lugar de: Nos respeitem. Eu não me importaria de falar português se a nossa língua mãe tivesse sido preservada e não arrancada de nós da forma mais vil e perversa.
— É muito importante que saibamos que nos deram uma língua que não fala por nós, que não nos representa, que não se ergueu da terra, mas sim do mar. Não é uma língua originária, não tem cheiro de Brasil e nem o seu corpo pintado. Não tem a nossa cultura e muito menos nossas memórias. Uma língua que teve que ser enxertada de empréstimos linguísticos para se adequar a nós.
— Esta língua não tem cheiro da terra, das matas, não ouve os cantos dos pássaros e nem tem pele morena. Nossa língua mãe foi tirada de seus filhos de forma perversa, e hoje percorre as tribos e matas tentando sobreviver ano após ano. Eu falo brasileiro com todo respeito a Pessoa, Camões, Saramago e Florbella Espanca. A minha língua tem gosto de tucumã, açaí, cupuaçu etc. A flor do Lácio não é a flor principal em meu Jardim. Ela não percorre os meus rios, não conhece minhas florestas, como também não tem a força de mil guerreiros.
E o Cacique, sorrindo, continuou a sua caminhada, levando em seu peito a sua língua, suas memórias, sua cultura e o orgulho de não ter sucumbido ao homem branco, pois ele guarda sua língua mãe no coração.
LÍNGUA ORIGINÁRIA
A minha língua mãe é carne
que sangra:
é a vida em movimento
dentro do meu povo,
dando voz ao seu silêncio.
Jorge A. M. Maia
O ATALAIA
Tupi Guarani, onde está você?
Te vi no Paraguai e parei para te observar.
És lindo, forte e cheio de vida.
Quisera eu poder te falar.
Jorge A. M. Maia