Em 10 de maio de 1933 o Nazismo queimou livros. Não foram 10 ou 20. Foram 25 mil! Queimaram esses livros como se pudessem apagar o passado e, com isso, fundar um novo presente.
Os 25 mil livros queimados fizeram parte de uma operação de limpeza. Sim, de limpeza da literatura. Não viam como censura. Os livros eram combatidos para que não se reproduzissem, pela propagação do conhecimento que continham. Matando um livro, matariam muitas pessoas com potencial livre pensamento. Quando o sistema se impõe, fica difícil resistir. A maioria silenciosa acaba abraçando o sistema e, de súbito, desaparece, quando este passa a ser representado por outras forças, distintas e opostas às anteriores. Ocorreu lá. Ocorre em qualquer lugar.
A questão é que há um poder acima dos poderes representativos e explícitos. Há um poder que não aparece, que não se deixa notar e que corre sorrateiro, deslizando por entre pilares estruturantes da sociedade. Esse poder é o que estabelece regras, que cria mecanismos de contenção da sociedade, que nos carrega ou larga, nos condena ou absolve, segundo os instrumentos de que o Estado se serve, seja qual for a forma de governo, o local ou país. Só quem cria essas regras tem o condão de modificá-las, sempre, para que se mantenha no topo. É aquela coisa de mudar tudo para que tudo fique no mesmo lugar. Mais modernamente, pela internet, os algoritmos fazem isso muito bem, nos aplicativos e programas, quando parte da seleção deixou de ser linear e feita por humanos. Algoritmos cuidam de tudo, friamente, distantes da nossa humanidade. Eles vão nos moldando e nos padronizando cada vez mais. Como no panóptico, a nossa exibição é a nossa prisão, já que nos expõe a todas as forças que nos controlam e vigiam. Tamanha exposição das massas, com as suas características e pensamentos, estaria bem ao gosto de pensadores que estudaram e manipularam o poder, como o Cardeal Richelieu e Maquiavel.
Paralelamente, o mundo parece caminhar para mais controle e centralização. Isso é assustador, mas não é surpreendente, na medida em que haverá mais gente para comer e menos pessoas estarão envolvidas nos processos de produção e nas cadeias produtivas, não pelo aprimoramento das máquinas – que apenas são e foram ferramentas – e sim pelo alcance da IA generativa e do que será capaz de fazer, segundo opinião de autoridades no assunto, tanto que já houve quem quisesse “desinventar” o processo, antes que a humanidade venha a perder o controle. Fala-se, também, na necessidade de criação de um plano de contingência global… A propósito, IA não corresponde às ferramentas disponíveis, sendo isso só a ponta do iceberg. A coisa é bem maior…
Quando governos pretendem ser puristas, isso nos remete a uma pureza idealizada por outros tempos, como, por exemplo, na ideia da Raça Ariana que alimentou o fascismo nazista. No mesmo rumo, a padronização do modo de vida e de roupas a moradias, tira a individualidade e é o ideal para a destruição da liberdade de ser conforme nascido, práticas que foram, em certa medida, empregadas na China de Mao e na Rússia de Stálin. Como cantava o Pink Floyd, vamos nos tornando mais um tijolo no muro, mais um na multidão e, deixando de ter sentido, as vidas vão se robotizando e a nossa humanidade se desfazendo, com as nossas existências sendo toleradas apenas segundo o significado desejado pelos governos.
Quem sabe se no futuro não surgiria um Ministério da Verdade? Cuidaria de qual verdade? Da própria, da comum a todos, da defendida em nome do bem comum, da verdadeira verdade, da verdade de uma facção sobre a outra, daquela que combateria os falsos fatos e chamaria de fake até as revistas em quadrinhos e os desenhos animados onde falam os animais e ganham vida mitos e lendas, como dragões, fadas, unicórnios e afins? Nessa linha, proibiríamos Alice no País das Maravilhas, O Magico de Oz, O Lobo Mau e os Três Porquinhos, Pinóquio, aquela estória sobre o tapete voador ou a outra sobre a porta que abre ao se falar Abre-te Sésamo? Os livros religiosos seriam os de algum credo oficial e ao gosto do dominante de plantão, com perseguição dos demais? Proibiríamos a imaginação que pode nos fazer refletir criticamente sobre as coisas?
O Ministério da Verdade controlaria o fluxo de toda informação? Separaria o joio do trigo, nos poupando de erros de interpretação e, quiçá, de alguma falta e condenação ou cancelamento nas redes? Controlaria os livros, as postagens nos aplicativos, os jornais, as revistas e os canais? Somente o Ministério da Verdade nos diria o que é a verdade em que deveríamos acreditar? Controlaria, por exemplo, os livros impressos e à venda e passaria, depois, a controlar os textos em edição e revisão? Adiante, buscando eficiência, controlaria os escritores, assim regulando os livros que surgiriam? Poderiam, ainda, controlar as cascas das árvores e as plantações de eucalipto e das outras plantas que pudessem servir à produção de papéis? Teria o controle total, sob o argumento de proteger a nossa liberdade dos discursos considerados inservíveis e tachados de falsos, amorais, tendenciosos ou religiosos?
Poderíamos ter, também, um Ministério da Fartura e o da Alegria e da Distração? O primeiro, daria as notícias – boas, sempre – sobre a oferta de produtos nos mercados, as geladeiras cheias, as casas com despensas abarrotadas. O Ministério da Alegria e da Distração nos alimentaria com informações sobre festas de rua, condições para o banho de mar, riscos de cabeça d`água, condições do trânsito nas estradas e o preço dos ingressos nos lugares e eventos, tais como praias, cachoeiras, parques estaduais, jardins, saraus, bailes e afins. Cuidaria, ainda, das notícias sobre shows circenses, musicais e de mágica. Estaríamos, por isso, mais envolvidos com distração e alegres momentos, poupando-nos do estafante hábito de ler livros e revistas, notadamente os que contenham textos que despertem o nosso senso crítico ou nos deem informações sobre o funcionamento dos governos dos países, as revoluções, os golpes, os sistemas de administração governamental, a história, os discursos marcantes, os textos políticos do mundo, os mártires e os mecanismos de controle e fiscalização dos gestores. Ficaríamos como o Pinóquio dentro do estômago da grande baleia, sem, contudo, poder obter luz para alumiar destinos. Ficaríamos no escuro. Inverteríamos a lógica do Mito da Caverna de Platão. Mas seríamos felizes, por conta do convencimento que nos faria, sobre tantas coisas, o Ministério da Fartura, juntamente com o Ministério da Verdade, para que pudéssemos aproveitar tudo o que nos proporcionasse o Ministério da Alegria e da Distração.
A história seria reescrita, para se reiniciar a partir de certo momento e se apagar fatos dos tempos idos, das formas de governo, construção dos governantes de outrora e coisas do gênero, segundo a máxima de condenação dos gestores passados. Tudo que teríamos que fazer é acreditar em mudança. Nem precisaríamos agir, ter o mérito de acertar as notas nas provas, de passar no processo seletivo, fazer gol no jogo de final do campeonato, lutar para bater recorde olímpico ou ser o trabalhador do mês em alguma empresa.
Se tudo seguir assim, vamos avançar muito no retrocesso. Nossa única salvação seria voltar, no futuro, à tradição das histórias orais, aos contos tradicionais e às narrativas a la Homero? Seriam essas as únicas formas de fugir do lugar comum, da verdade imposta pelo Ministério da Verdade e pela narrativa massacrantemente monótona da versão oficial – de qualquer governo – do modo de viver, convencendo-nos de que tudo é feito para nos fornecer liberdade segundo um padrão do sistema, que se contrapõe à sensação de ser livre que o ser humano sempre almejou e que foi cantada por poetas e escritores e por metáforas como as simbolizadas pelas Asas de Ícaro…
A guerra da verdade não é sobre isso. É sobre poder. É sobre a dominação. É sobre a vaidade de se poder dizer que tem razão. É sobre desejar sobrepujar. É sobre ser reconhecido pelo acerto e não identificado quando o erro aparecer. A guerra da verdade é uma guerra de narrativas. Essa guerra está nos noticiários. Vemos exemplos nas falas de um ou outro líder mundial. Assistimos discursos de um dizendo que a CIA estará autorizada a agir dentro de outro país e de outro dizendo que todas as riquezas estariam disponíveis para que isso não ocorresse. Estamos em guerra de narrativas em várias situações no Oriente Médio. Ela também se dá pela alimentação da desinformação, da construção de guerra de falsa bandeira, da guerra por procuração e de circuitos de eventos próprios da guerra-fria.
O Ministério da Verdade não pode, contudo, se apoderar da memória coletiva, do DNA da nossa existência, do histórico familiar da descendência dos nossos avós e bisavós, da nacionalidade, dos nossos times do coração, da liberdade de escolha de emprego, estudo, gosto musical e onde gastar o dinheiro. Não pode substituir o nosso dinheiro por vales e tributar tanto mais o trabalhador a ponto dele preferir ganhar menos para ter mais do que ganhar mais para ter menos.