“Se a floresta, meu amigo, tivesse pé pra andar
Eu garanto, meu amigo, que com o perigo não tinha ficado lá”
“Saga da Amazônia” – Geraldo Azevedo
Há territórios que resistem sem fazer alarde. O Amapá é um deles.
Enquanto o mundo empilha discursos sobre preservação, nós seguimos aqui, entre marés teimosas e raízes antigas, fazendo aquilo que sempre fizemos: segurando o mundo pelas beiradas para que ele não desabe de vez.
E é curioso — ou talvez trágico — perceber que só agora, às vésperas da COP30, os grandes centros parecem descobrir que existe mais sabedoria numa canoa do Bailique do que em certas conferências internacionais.
Não por folclore. Mas porque aqui a vida aprendeu a existir no fio da madeira e no fôlego da floresta.
A chamada carpintaria poética amazônida — expressão bonita demais para ser inventada por acadêmicos — nada mais é do que o que meus avós e seus avós já sabiam:
que a árvore não é matéria-prima,
que o rio não é obstáculo,
que a floresta não pede licença para ser sagrada.
E quando eu escrevo sobre isso, lembro imediatamente daquela música que atravessou gerações como um sinal de alerta: “Saga da Amazônia”, de Geraldo Azevedo.
Aquela voz que dizia “chega de tanto sofrer”, antes mesmo do mundo admitir que a Amazônia estava sangrando.
Aquela toada que denunciava “derrubaram a mata inteira” enquanto muita gente ainda chamava isso de progresso.
Aquele refrão que parecia exagero, mas que hoje é diagnóstico:
“A vida pede socorro, quem pode ouvir?”
Pois aqui no Amapá, eu digo sem temer: nós ouvimos.
Ouvimos quando o vento do Curiaú passa raspando nas mangueiras.
Ouvimos quando o rio-mar do canal resolve avançar como quem ataca e recua como quem reza.
Ouvimos quando a madeira estala antes do corte, avisando que toda retirada tem consequência.
Ouvimos porque nunca tivemos o privilégio de nos ouvirem…,
E é por isso que a chegada da COP30 não me seduz com glamour diplomático.
Ela me provoca — porque sei que virão falar de futuro num lugar que tem futuro justamente porque não destruiu o passado.
O Amapá ainda é um estado inteiro.
Inteiro de mata.
Inteiro de água.
Inteiro de gente que sabe que a floresta não é cenário, é personagem.
Quando Chico Mendes disse que lutava pela humanidade, parecia profecia. Hoje é apenas constatação.
Quando Krenak afirma que “somos a natureza se defendendo”, ele não usa figura de linguagem — descreve a realidade daqui.
E quando Geraldo Azevedo, lá atrás, cantou a saga de uma Amazônia cercada, ele fez mais do que arte: deixou um alerta que só agora se tornou urgência diplomática.
Este texto — assumo — não é neutro.
Nem pretende ser.
É escrito com a parcialidade de quem pertence ao território que o mundo sempre tratou como borda, mas que agora revela ser centro moral da sobrevivência planetária.
Se querem aprender sobre clima, que venham.
Mas que venham com humildade.
Porque aqui, no meio do mundo, onde a linha do Equador risca o chão e parece dividir eras, a floresta ensina algo que nenhum relatório técnico consegue traduzir:
não se derruba aquilo que sustenta você.
não se saqueia aquilo que lhe dá nome.
não se cala uma voz que canta antes mesmo de existir asfalto.
E se a Amazônia tem uma saga, como cantou Geraldo,
o Amapá é um dos seus capítulos mais teimosos —
aquele que insiste em ficar de pé enquanto o resto do planeta se inclina.
Venham, senhores,
A floresta que falar com vocês!
Sonia Canto a respeito do artigo “No rastro da floresta que não se entrega”
Minha impressão é que o artigo “No Rastro da Floresta que Não se Entrega” não apenas dialoga profundamente com o legado de Fernando, mas parece ser uma extensão vibrante da sua própria voz e visão sobre a Amazônia e, em particular, o Amapá.
O texto exalta a resiliência do Amapá, sua sabedoria ancestral e a intrínseca conexão de seu povo com a floresta — “que a árvore não é matéria-prima, que o rio não é obstáculo, que a floresta não pede licença para ser sagrada”. Essa perspectiva se alinha perfeitamente com a biografia de Fernando Pimentel Canto, descrito como um “homem amazônico”, nascido em Óbidos e com sua identidade moldada em Macapá. Fernando, em sua vasta obra literária e musical, frequentemente “mergulhava nas paisagens, na cultura e nas identidades da Amazônia e do Amapá”, dando “voz e visibilidade às narrativas e identidades amazônicas”.
A crítica do autor às abordagens externas sobre a Amazônia, especialmente em relação à COP30, e a valorização do conhecimento local (“mais sabedoria numa canoa do Bailique do que em certas conferências internacionais”) ecoam a preocupação de Fernando Canto com o “desenvolvimento regional” e a “gestão ambiental”, sempre sob uma ótica que considerava as especificidades e desafios da região. Sua dedicação à revitalização do marabaixo e do batuque, inclusive com o reconhecimento do marabaixo como patrimônio imaterial, demonstra seu compromisso ativo com a preservação das tradições e da cultura local, algo que Lobato celebra ao afirmar que o Amapá “tem futuro justamente porque não destruiu o passado”.
Carlos Lobato, ao se identificar com a “parcialidade de quem pertence ao território que o mundo sempre tratou como borda, mas que agora revela ser centro moral da sobrevivência planetária”, capta a essência do que Fernando Canto representava: um intelectual, artista e guardião das tradições que via a Amazônia não como um cenário a ser explorado, mas como um “personagem” vivo e sagrado, detentor de uma sabedoria fundamental para a existência do planeta. O texto, portanto, é um poderoso testemunho da “alma amazônica” que Fernando Canto tanto ajudou a construir e preservar, mantendo viva a melodia de suas canções e a força de suas palavras em defesa de sua terra.

