O Brasil atravessa um dos períodos mais sombrios de sua história recente. A condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro, longe de encerrar um ciclo de ataques à ordem democrática, desencadeou uma reação em cadeia no Parlamento, em que seus aliados decidiram transformar a derrota judicial em um projeto político de revanche. Primeiramente, avançaram com um processo legislativo destinado a blindar parlamentares envolvidos em práticas criminosas, num gesto que lembra a lógica da impunidade institucionalizada. O sociólogo Sérgio Abranches alerta que a erosão das instituições não ocorre apenas por rupturas abruptas, mas sobretudo pelo acúmulo de medidas que corroem silenciosamente os mecanismos de controle e responsabilização. O Parlamento, que deveria ser guardião da Constituição, converte-se, assim, em cúmplice da erosão democrática.
Na sequência, numa voracidade que beira a afronta, a base bolsonarista não se contentou em resguardar seus próprios membros: partiu para aprovar a anistia ao ex-presidente, transformando o que deveria ser um caso paradigmático de responsabilização política em mais um capítulo da velha tradição brasileira de “perdoar os poderosos”. Hannah Arendt, ao refletir sobre a banalidade do mal, ensinava que a normalização de condutas abusivas abre espaço para o colapso da ética pública. Nesse contexto, o ato de anistiar um líder condenado por atentar contra a democracia é mais que um gesto de conciliação — é a institucionalização da violência política. Como bem destacou o cientista político Luis Felipe Miguel, o Brasil parece incapaz de romper com a cultura de impunidade que sustenta nossas elites, perpetuando o ciclo de transgressão e esquecimento.
Entretanto, a sociedade civil não permaneceu inerte. Milhares de vozes ergueram-se nas ruas e nas redes, repudiando a tentativa de absolvição parlamentar. Mas o grito popular não foi suficiente para intimidar a máquina legislativa dominada por interesses corporativos e autoritários. O filósofo Jürgen Habermas sublinha que a democracia só se sustenta quando há um espaço público vivo, capaz de pressionar e impor limites ao poder político. No Brasil, porém, esse espaço encontra-se sob ataque de uma coalizão que tenta reduzir a cidadania a mero espectador. Se, de um lado, a reação popular demonstra que há vitalidade democrática, de outro, a obstinação do Congresso em avançar com medidas antirrepublicanas expõe o abismo entre governantes e governados.
Marcha-se, assim, para um cenário de caos político. A democracia brasileira, que já sobreviveu a golpes, ditaduras e retrocessos, enfrenta mais uma tentativa de ser domesticada pela lógica da conveniência e da impunidade. O ex-presidente uruguaio José Mujica certa vez afirmou que “a democracia não é perfeita, mas é o melhor que temos; e quando ela fracassa, o que sobra é a barbárie”. O Brasil está no limiar dessa barbárie: ou reafirma o pacto constitucional de 1988, garantindo que ninguém está acima da lei, ou se arrisca a mergulhar em um ciclo de instabilidade permanente, no qual as instituições tornam-se reféns de facções políticas dispostas a tudo para salvar seus líderes. A condenação de Bolsonaro deveria ser um marco de reafirmação da democracia, mas pode transformar-se, se a anistia vingar, em um epitáfio da República.
O Brasil e a sombra da anistia diante da ação das facções políticas
