Euclides da Cunha escreveu um dos clássicos da literatura sobre o universo, a geografia e a nossa gente: Os Sertões. Usando apenas o título, sem me prender ao conteúdo da obra, é inegável que há uma visão plural sobre o que se compreende como sertão, que, sabemos, ora pode ser visto como uma localização geográfica e ora como identificação cultural.
O Brasil, esse país plural, miscigenado e continental, é tão grande que é o único do mundo cortado por duas linhas geográficas importantes ao mesmo tempo: a linha do Equador e o Trópico de Capricórnio. Quantas coisas, pessoas e histórias cabem no intervalo dessas marcações?
Atravessando esse pensamento, me pergunto por qual razão a gente insiste em sempre falar sobre o nosso país levantando a imagem do futebol, do samba, da arara, da onça-pintada, do chinelo de dedo que os estrangeiros amam e, claro, das cores calorosas e saturadas que combinam com esse clima tropical e com “a alegria que só o brasileiro tem”.
Escrevi, há um tempo atrás, que somos maximalistas por natureza. Muito no jeito de se vestir, mas também porque falamos muito, rimos alto e festejamos até quando não existe motivo para tal… a nossa essência é maximalista e excêntrica e esse não-minimalismo está relacionado também à diversidade do nosso povo, da nossa cultura…
As influências que chegaram aqui foram muitas e, ao mesmo tempo, estamos sempre olhando para outros lugares. O nosso mundo “globalizado” é ultraconectado. A gente se conecta com pessoas de todos os lugares e sofre influências desse modo também, que ultrapassam as barreiras do imperialismo e do colonialismo, que conhecemos.
Eu já venho pensando sobre a pluralidade do Brasil há muitos anos, especialmente depois de começar a realizar trabalhos de pesquisa e fotografia em torno de visitas ao interior do país, notadamente da Bahia e de Minas Gerais, que fiz naturalmente ao decorrer da minha vida, ao longo de mais de uma década. Tenho uma série de fotografias, inclusive, chamada “Pedaços dos Sertões”, que conta um pouco dessa história.
Uso a palavra ‘sertão’ dessa forma, no plural, porque não existe um só sertão nessa imensidão de território, vide Euclides da Cunha. Isso se constata também pelo olhar de quem presta atenção às coisas, pessoas e paisagens. Em viagens à essa região, eu pude presenciar a vastidão de tudo que se insere na ideia de sertão.
O Brasil, no entanto, é resumido, quase sempre, à um estereótipo que não é fidedigno ao povo e às suas vivências particulares, dentro do coletivo do que é “ser brasileiro”. Digo: viajei de norte a sul e, apesar de ainda não conhecer todos os estados do país, conheço a grande maioria e posso afirmar: o Brasil é muito mais do que podemos imaginar.
Em todas as viagens que faço pelo nosso território, me deparo com a religiosidade presente nos mais diversos estilos e formas de demonstração de fé, independentemente da religião. O brasileiro é, sem dúvida, um povo muito devoto e o catolicismo, historicamente, ocupa um lugar de protagonismo nisso. As romarias tomam as cidades, movidas por fé, dor, promessas e amor. Pelo caminho, há de tudo um pouco: igrejas, capelas, terreiros, centros espíritas, templos budistas…
Além das religiões, me deparei com muitas outras coisas nessas viagens, mas o mais importante de tudo: conheci pessoas e ouvi as suas histórias. Artistas e artesãos do nosso país, feirantes, galeristas, funcionários de instituições culturais, guias turísticos, donos e funcionários de restaurantes, lojas e de hotéis… A troca é sempre fundamental.
Nesta semana, em um seminário na Pinacoteca de São Paulo, pude ouvir artistas contando sobre seus trabalhos, como a Alice Yura e o Dalton Paula, com o Sertão Negro, por exemplo. Com os seus projetos artísticos, eles recontam histórias e traumas e tentam, através da arte ou da facilitação do acesso a ela, mudar perspectivas, sensibilizar olhares e transformar vidas.
Em sua fala, Alice me chamou demasiada atenção ao dizer algo que já é de conhecimento comum no mundo da arte, mas que falado em voz alta, pareceu muito mais sério e importante. Ela disse que precisou sair da sua cidade natal para estudar e para ser artista, porque “como é possível produzir e viver de arte contemporânea numa cidade com cerca de 30 mil habitantes?”
Há riqueza cultural em todo lugar, tem gente produzindo arte em todos os estados, em todas as cidades. Ainda assim, o Brasil comercializa a “identidade brasileira” que vende e briga sobre o conceito de brasilidade, questiona o fazer e o pensar brasileiro, a arte brasileira e etc. Já falei aqui sobre como tem gente que viaja e tira foto em museus de fora do país, mas não visita um museu sequer dentro da própria cidade… Não é sobre isso, mas tem a ver.
A fala da Alice me fez pensar numa coisa maior: quem pode fazer arte no Brasil? Quem consegue espaço, visibilidade, apoio? É impossível não perceber o quanto ainda existe uma concentração cultural absurda no país. A arte, assim como a moda e tantas outras áreas, parece que só ganha “valor” quando nasce no eixo Rio-São Paulo ou em cidades muito turísticas, de outros estados. O que vem do interior, das margens, das cidades pequenas, não ganha tanta relevância no mercado de arte.
Nada tem a ver com falta de talento, qualidade ou com a potência criativa dos fazedores. Tem a ver com estrutura, com acesso, com presença de instituições, de editais, de espaços de circulação. Com uma rede que, infelizmente, não alcança todo mundo. A arte feita longe do centro existe, pulsa, emociona, transforma, mas ainda sofre para ser legitimada num país que insiste em medir o valor cultural do que é produzido dentro dele.
Os trabalhos da Alice, do Dalton Paula e de tantos outros artistas espalhados pelo país, mostram que é possível ressignificar, reconstruir e recontar histórias. Eles mexem com memórias, com afetos, com identidades e isso também é Brasil, isso também é arte brasileira, mesmo que não esteja idealmente nos moldes convencionais.
É o limbo da cultura de quem não ama a arte, mas acha que pode falar sobre. Isso se estende para a moda também: enquanto um país acredita que brasilidade é apenas o colorido, a estampa, o tropical, marcas nacionais e independentes não conseguem espaço genuíno porque sempre vai ter alguém puxando o tapete.
Recentemente, a Moncepars, marca da Sasha, fez o seu segundo desfile. Me lembro de ver inúmeras pessoas falando absurdos porque ela queria imitar o estilo europeu, que a moda que ela faz não é brasileira, que isso não explora os conceitos estéticos de “Brasil” que a gente tem e que são tão ricos.
A questão é: a gente tem muitos conceitos estéticos genuinamente brasileiros e é necessário enxergar essa diversidade nisso também. A Mondepars não é menos brasileira que a Farm, que a Cris Barros, que a Osklen, que a Isabela Capeto, por exemplo. Antes dela, já existiam incontáveis marcas que não abordam a brasilidade dessa forma comercial, como Neriage e Gloria Coelho…
Existem muitas marcas incríveis, brasileiras, recriando a identidade da moda nacional, como a alfaiataria moderna da Handred, o afrofuturismo da Isaac Silva, a explosão da identidade baiana da Dendezeiro, a ancestralidade dos Meninos Rei e a sofisticação silenciosa da Apartamento 03.
A arte e a moda brasileira vão se recriando conforme o tempo passa e resistindo às dificuldades que surgem. De uma coisa eu sei: cabe muita vida, muito fazer, muito criar e uma imensidão de histórias no intervalo das nossas marcações geográficas. A gente só precisa olhar para dentro.
O Brasil inteiro é arte, história e cultura
