O editorial publicado pela Folha de São Paulo, no final do mês de setembro, sobre o Projeto de Lei nº 4/2025 reacendeu um debate essencial sobre os limites da modernização legislativa e os perigos do chamado “populismo jurídico”. A crítica central recai sobre a tentativa de apresentar o projeto como uma solução protetiva aos vulneráveis, quando, na verdade, mina a previsibilidade das regras e ameaça a segurança jurídica.
Juristas como Lênio Streck já alertaram em diferentes ocasiões que a previsibilidade é a alma do Estado de Direito: sem regras estáveis e claras, a vida em sociedade se transforma em um permanente estado de exceção, em que a vontade do intérprete suplanta a norma democraticamente instituída. Nesse sentido, a proposta de refundação do Código Civil, em vez de corrigir distorções pontuais, parece pavimentar o caminho para uma hipertrofia do poder judicial em detrimento da função legislativa.
Outro aspecto que merece crítica contundente é a mistura de planos normativos distintos. O PL 4/2025 confunde institutos do Direito Civil com regras de proteção ao consumidor e experimentos arriscados no âmbito do Direito de Família. O professor Gustavo Tepedino, um dos maiores civilistas brasileiros, destacou em seminários recentes que reformas dessa natureza não podem ser conduzidas com base em improvisos, sob pena de gerar contradições insolúveis e insegurança nos contratos privados. O jurista Ingo Wolfgang Sarlet também já advertiu que a sobreposição de normas protetivas, sem critério técnico, resulta não em maior garantia de direitos, mas na fragilização do próprio sistema, abrindo espaço para arbitrariedades. O projeto ignora ainda leis recentes que já modernizaram setores sensíveis do Código, revelando mais pressa política do que responsabilidade legislativa.
A crítica, porém, vai além da técnica: atinge o coração do equilíbrio institucional. Multiplicando conceitos jurídicos indeterminados, a reforma legitima o ativismo judicial, entregando a juízes um poder normativo que não lhes compete. A advertência feita pelo ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Eros Grau, é lapidar: “quando a lei é vaga, o juiz se torna soberano; e quando o juiz é soberano, a democracia é subjugada”. Em um cenário em que a magistratura já demonstra inclinações preocupantes ao arbítrio, dar-lhe ainda mais espaço para legislar por via interpretativa equivale a corroer os fundamentos republicanos. A construção do Direito não pode se assentar na areia movediça das subjetividades, mas nas pedras sólidas de consensos democráticos e técnicos. O preço de ignorar esse princípio será pago por toda a sociedade, em forma de contratos mais caros, investimentos retraídos e conflitos sociais acirrados.
Diante desse quadro, cabe ao Senado a responsabilidade histórica de interromper essa marcha da insensatez. Como bem sintetizou a Folha, o Brasil não precisa de aventuras legislativas açodadas, mas de reformas focadas, calibradas e legitimamente consensuadas. Arquivar o PL 4/2025 não significa recusar qualquer atualização do Código Civil, mas sim reafirmar que mudanças estruturais exigem debates amplos, sérios e transparentes.
Como lembrou o jurista Miguel Reale Júnior, “não se deve demolir o edifício inteiro apenas para corrigir rachaduras nas paredes”. O caminho responsável é o da prudência legislativa: preservar o que funciona, corrigir o que se mostra problemático e evitar, sobretudo, que o Direito seja sequestrado por agendas populistas travestidas de proteção social. Qualquer outra solução será não apenas capitulação diante do arbítrio, mas convite ao caos jurídico.