Quando aqueles nobres animais se foram, a praça ficou vazia, pois aqueles vira-latas que não se curvaram às outras realezas, permaneceram ali, enquanto os outros seguiam pelas ruas perambulando e tentando achar o seu pedigree, a fim de serem aceitos pela nobreza.
No outro dia, voltei àquela praça maravilhosa e cheia de surpresas e personagens intrigantes para mais um dia memorável. Logo percebi que novos cachorros apareceram por lá e eram conhecidos dos demais, porém dava para perceber que eles eram vira-latas que não pertenciam mais aquela classe social, pois estudaram, se qualificaram e agora estavam na elite social, estavam “elitizados” e pareciam ter esquecidos de onde vieram.
Notei que alguns cachorros da plebe eram desprezados por esses da nova classe social, pois falavam com eles e eles faziam pouco caso deles. Faziam de conta que não os conheciam e muito menos dirigiam atenção a ele. Alguns reclamavam e se chateavam com a atitude anticanina de seus amigos de luta que agora, não lutam mais pela mesma causa.
Eles são convidados para algumas festas que antes não iam, comem comidas que antes não comiam, usam roupas boas que antes não usavam e até moram em lugares que antes nem pensavam em morar. Agora chegam de carro, esquecendo que antes andavam a pé ou de coletivo.
A tomada de consciência não foi um processo que fez parte do desenvolvimento de muitos ali – tanto é que alguns continuam na mesma até hoje. Mas entender-se elite de alguma coisa, algo que sempre vai estar aberto a debates, é um entendimento para sempre difuso e inconclusivo. De que vale ser elite, afinal de contas?
O patrimônio que se tem serve somente a você, como não poderia deixar de ser, mas as poucas ideias que se pode oferecer para seus semelhantes colegas sociais em termos de equidade nunca serão aceitas por confrontar um sistema de castas meritocráticas, no qual se crê com uma devoção quase religiosa.
Alguns “elitizados” pensam que: há o tal “lugar da fala”, que não permite falar em nome quem quer que seja diferente da condição sem que seja questionado sobre quem és tu para falar em nome de uma pessoa pobre, por exemplo. Presos em um limbo de classes e lancinados vez ou outra por uma “culpinha” inofensiva, lhes restam poucas opções. Será?
Não quero dizer que eles não têm o direito de viver melhor ou subir de classe social, o problema é que a “elitização” parece trazer um certo Alzheimer para alguns pobres coitados. Eles entraram naquele processo de transformação social estabelecido pela classe média alta que resulta em mudanças significativas na dinâmica social, econômica e cultural de uma sociedade. Agora eles pertencem à Elite, aqueles que têm capacidade de tomar decisões políticas ou econômicas.
Tobby, (Ele amava seu nome por ser um nome em inglês, só faltava ele usar o boné vermelho: MAKE AMÉRICA GREAT AGAIN) um cão estudioso, apaixonado por história, estudou, fez Licenciatura em história, mestrado e passou no concurso para professor. Ele era um cachorro de luta, era de greve e sempre estava tendo embate com a direção de sua escola. Ele se revoltava quando mandavam falta dele sem conversar com ele, ou quando cobravam plano de aula ou atestado por alguma ausência. Criticava o governo e era a favor da greve e tratava seus amigos de “companheiro”.
Tobby, na eleição escolar, foi escolhido para ser diretor de sua escola (apoiado pelos professores), pois era um cachorro inteligente e de boas ideias educacionais e que lutava em prol da classe.
Quando o “nobre cão” tomou posse, logo em seu discurso inicial, já se percebia a mudança. Ele já se sentia da Elite educacional. Não chamava mais os professores de companheiros, mas sim de professor, pedia para a classe não grevar, cobrava atestados e mandava faltas. Fazia tudo que antes ele era contra.
Tobby só convidava para o churrasco em sua casa, Lucky, Steven, Bobby, Sindy, Ernandes e outros poucos que tinham mestrado ou doutorado, nunca o Zé, Bené, zarolho e o perneta, amigos de luta e de muitas noites na praça. Ele esquecia que logo, logo, ele voltaria a ser professor, ser o que ele realmente era. Não aprendeu de fato a diferença entre os verbos ser e estar.
Volto a repetir: Não é errado estudar e subir de classe ou melhorar suas condições sociais, mas sim permitir que o Alzheimer tome conta de sua vida.
Olhei e vi uma família canina indo para algum lugar, e com eles um lindo cachorro vira-lata, o qual falava com todos os outros da praça. Parecia que ele estivera sempre por ali. Um sujeito de uma simplicidade ímpar. Eles passaram bem próximo a mim, um tipo de encontro muito especial e único.
Suas roupas exprimiam simplicidade. Num mundo superficial, aquilo seria também um determinante intelectual. O lindo ser canino cruza seus olhares com os meus, talvez pensando a mesma coisa, talvez pensando em nada. Apesar da pouca idade que ele aparentava, não temo dizer que certamente saiba muito mais do que eu e que tenha alcance a assuntos que nem imagino. Ele era simples e não sedia.
Não sei para onde foi aquela família, mas ao passar por mim, aquele lindo animal me disse e me ensinou algo somente com aquele meigo olhar:
- A dor é necessário que se sinta no corpo, está na carne, não dá para esquecer. Vocês têm que entender o perfil de cada um de seus amigos”. Neste lugar onde uma grande parte da população vive na linha da pobreza, falar da dor com quem convive com ela é um paradoxo. Como explicar violência policial, drogas, estupro para quem vê isso todo santo dia? Será que dá para esquecer dessa luta por ser agora de outra classe social?
Então pensei comigo mesmo: Tive o privilégio de crescer em um bairro arrumadinho da cidade. Não é zerado de problemas, tampouco rico, só era arrumadinho, isso eu achava.
A elite, a gente pode nem ver, mas a vida, sim, e são por esses curtos e silenciosos encontros que ela vale a pena. Quantos Tobbys existem por aí? Os quais se erguem e já não veem de onde vieram.
O problema não é a elitização, mas, sim, o Alzheimer.
Jorge A. M. Maia