Garderobe, palavra derivada da língua francesa, significa um tipo de estrutura existente em castelos e que todos parecemos ignorar.
Olhando de longe, parecem apêndices nas altas estruturas de pedra, como se fossem verrugas. De perto e por dentro, formam pequenos anexos que, frequentemente, foram utilizados como latrinas, onde os nobres faziam as suas necessidades, que, simplesmente, despencavam de lá!
Em alguns casos, os dejetos eram atirados em fossos d`água. Noutros, seguiam por estruturas parecidas com tubos. Normalmente, simplesmente caíam lá de cima, no exterior dos castelos. Simples, assim.
Tínhamos uma situação dentro daqueles prédios e outra, bem diferente, do lado de fora. Por dentro, imperavam as pompas e circunstâncias em torno do cotidiano da nobreza, as cores dos enfeites e roupas, a alegria das músicas e festas e a seriedade das solenidades. Por fora, mas ainda dentro das muralhas, desenvolviam-se atividades em torno da vida nos castelos, como cozinhas, oficinas, guarda e proteção.
Excepcionalmente, em épocas de batalhas ou ameaças, poderia o povo ou parte dele entrar nos muros dos castelos, contribuindo para a guarda e atividades inerentes ao esforço de guerra, embora isso também causasse problemas com a alimentação de tanta gente e dificuldades decorrentes da superlotação.
Normalmente, contudo, a vida fora do castelo em nada se comparava ao que ocorria dentro e o povão mais se dedicava a trabalhar a terra, na produção de alimentos. Essa massa, a maioria da população, pouco ou nada se importava com o que estivesse além do seu dia a dia, dividindo-se entre invejar a vida dos que viviam dentro dos muros, admirar a fartura e a beleza aparente, aplaudir os desfiles e as notícias e os jogos, cabendo-lhe mais trabalhar – e muito – de sol a sol, nos vários sistemas de trabalho das épocas passadas – e pagar impostos.
O garderobe dos castelos antigos serve, hoje, metafórica e filosoficamente, como parâmetro crítico, pois parece que os dirigentes dos países continuam a agir como se pudessem fazer o que desejassem e, simplesmente, expelir os dejetos para o lado de fora dos palácios governamentais.
Seja no capitalismo, no socialismo, na democracia, na tirania, na teocracia, um fator comum é a cúpula agir sem muito se importar com o que as ações de poder e de gestão possam ocasionar do lado de fora dos seus castelos.
Continua-se a agir na troca de favores e na satisfação de interesses de apoiadores e donos dos poderes de fato – que são tão influentes aos poderes formais. Reinam os ajustes políticos de ocasião e a adoção de leis e medidas que às vezes mais parecem feitas para manter o jogo do poder no equilíbrio existente do que permitir vantagens e melhorias efetivas à população.
Penso que temem que os povos possam querer ascender socialmente, ganhar outros interesses e se desamarrar dos grilhões que as estruturas sistemáticas de poder ainda lhes impõem.
Acredito que se preocupam que os povos não mais se permitam distrair com o “pão e circo” frequentemente empregado para lhes dar algum prazer e distração, como prêmio por sua submissão, enquanto ainda oferecem variações de shows e outras exibições, como reedição dos jogos que se fazia no Coliseu de Roma.
Ainda aplaudimos as cortes, admiramos os vestidos das damas e nos perdemos nos rituais solenes que, ao mesmo tempo, afastam a população dos detentores do poder e os enaltecem como os diferentes de nós.
Os discursos soam imponentes, mas não nos aproximam deles. Continuam a se tratar como nobres e a nos deixar distantes.
Falam em cobrar impostos das grandes fortunas mas tendem a mais atingir os servidores públicos – como se fossem estes os culpados por tudo, como o malfeito do INSS e outros escândalos históricos da nossa República – enquanto se continua a sobrecarregar a população assalariada, que não têm como fugir dos impostos cotidianos, já que estão embutidos em tudo o que se consome.
Os empregos são disputados e casa própria ainda é um sonho para grande parte da população. Colocar comida na mesa é uma luta diária, assim como sobreviver à violência das cidades grandes e ao transtorno dos sobrecarregados sistemas de transporte público – e engarrafamentos.
Tudo isso nos distrai, nos absorve energia, nos consome a atenção e nos tira o tempo de analisar criticamente os discursos e as práticas… e as denúncias que se faz, sobre algumas coisas que acontecem nos castelos, aqui e em qualquer lugar.
Embora haja melhorias, parece que globalmente as coisas não melhoram, os juros estão elevadíssimos, o mundo se polariza e as vantagens, que são oferecidas ou conquistadas, dificilmente se consegue manter.
A população continua a alimentar a esperança de que dias melhores virão. Esperança, como se diz, é a última que morre… e, por isso, a ela nos apegamos, tanto, já que morremos a cada dia, enquanto temos, embotados, tantos sonhos… e enquanto castelos continuam a ter as suas latrinas apontadas para o lado de fora.
OS BANHEIROS DOS CASTELOS FICAM PARA O LADO DE FORA
