Acontece cada coisa curiosa no consultório. Algumas ficam na minha memória pela graça e leveza. Esse relato é um caso.
Atendi há muitos anos e durante quase duas décadas, uma mulher negra, reconchuda, bonita e muito agradável, na casa dos 70 anos, hipertensa e diabética.
Era uma pessoa disciplinada, mas chamava atenção o fato da pressão não controlar adequadamente as comodidades, ainda que tomasse sua medicação e nada de extraordinário ocorresse em sua vida. Há muito evitava o sal, não fumava e não fazia uso de bebida alcoólica, exceto uma “latinha de cerveja”, às vezes.
Ultimamente, era sempre assim: geralmente, nos fins de semana, várias idas ao pronto atendimento, quando, então, disse: “tomava injeções para baixar a pressão” e poucos dias depois, lá estava ela novamente na sala de urgência/emergência.
“A senhora não está escondendo nada de mim? Eu não sei mais o que fazer”, brinquei. “A medicação me parece correta e a senhora só piora depois do sábado e domingo? Por que será? O que é que a senhora faz de diferente? É alguma festa no fim de semana? Remédio para pressão é bom para pressão e não para tensão ou para confusão, a senhora entende o trocadilho”, disse-lhe. “Isso deve ser algum encosto”. Brinquei de novo. E, curiosamente, lembrei de uma canção.
“A senhora conhece esse ponto de umbanda? 🎵Coragem, meus marinheiros, coragem pra navegar, ela se chama Mariana*, ela é a Rainha do Mar”.🎵
A mulher, surpresa, arregalou os olhos, fez um sorriso matreiro como se eu tivesse adivinhado algum segredo seu.
Mãe e filha se entreolharam desconfiadas comigo.
“Êpa, de onde o senhor conhece isso, doutor?”, ela me perguntou curiosa e admirada. Respondi-lhe: “a minha tia-avó, Juca, era mãe de santo. Eu adorava aquilo tudo. Levei muitos “passes” dela.
A filha falou, então:
“Mãe, eu vou contar pro doutor”, disse ela.
A mulher fez cara feia com ar de reprovação, negando com a cabeça.
“Doutor, ela tá escondendo do senhor; ela bebe, sim, fuma e muuito e o fim de semana todo!”
“Como assim? Não acredito, mulher!” Disse eu mais como provocação.
“Mentira, doutor, eu não!”, disse ela. “São os caboclos, ora! Eles que me obrigam na hora que eu, “incorporada”, estou dando passes! Pedem que eu satisfaça eles e não é pouco, não.”
As duas começaram uma carinhosa discussão entre mãe e filha. Eram cúmplices e uma estava entregando a outra. Falou ela baixinho: “menina, deixa de ser dedo-duro, minha filha!
Eu não pude deixar de rir.
“Êpa, ‘tá bom”! Aqui não é delegacia de polícia p’rá gente ‘tá fazendo acareação entre duas meliantes. Aqui é um consultório médico!
Ambas riram muito.
O fato é que por conta da sua “profissão” (dona Dulce era seu nome-que Deus a tenha ao seu lado), ela era “obrigada” a fumar o cachimbo e a beber cervejas; durante anos, ela me escondeu que tinha um famoso Terreiro de Candomblé; ela era uma famosa Mãe-de-Santo!
AXÉ!
Paulo Rebelo, médico escritor e poeta.
*Mariana é o apelido de Iemanjá, a mãe de todos os santos do candomblé.
Apenas há pouco tempo soube que meu querido amigo e paciente Humbrto Moreira era seu filho. O texto é um presente a ele e familiares.

