Já ouviu falar que uma pessoa criativa precisa de tempo para criar? Digo, tempo livre mesmo, ocioso. Como um momento de contemplação, de reflexão, de questionamento… A gente precisa viver os processos, entender o bom e o ruim que existe dentro de nós e, da confusão onde essas coisas se encontram, se permitir sentir novas coisas. Só então é que nasce algo. Nem sempre bom, bonito ou legal, mas sempre interessante e legítimo.
Em um sistema que exige lançamentos contínuos, tendências semanais e supervaloriza o consumo, o espaço vazio é tratado como falha. Essa coisa do humano, de precisar recarregar as energias, tomar um café, respirar, pensar, levar tempo para executar tarefas, tem sido considerado negativo… Então a modernização do mundo tenta cuidar disso e põe máquinas para substituir pessoas e criar coisas.
Porém, é justamente nesse intervalo que se encontra a potência criativa: o ócio nem sempre é sinônimo de improdutividade, mas uma condição para novas soluções. Ignorar esse tempo de respiro significa sufocar a própria possibilidade de novidade, de criação, de surgimento de ideias.
Tenho pensado que talvez o gesto mais radical, hoje, seja sustentar o silêncio. Em qualquer lugar tem som, música, gente falando, buzina, sirene… Em todas as publicações nas redes sociais, colocam música. Por isso gosto do Substack: além de não ter música nem anúncios, é uma rede social de textos. É como o silêncio entre as redes sociais…
Resistir ao silêncio é como resistir à pressa. É desafiador, especialmente em tempos onde corremos contra o tempo… Isso nos faz entender, portanto, que o artista é, na verdade, um ser revolucionário.
Inclusive, nem sempre que finalizamos uma obra, começamos outra imediatamente. No silêncio que existe entre uma obra finalizada e o início de outra, mora a ressaca criativa, a solidão do processo, o apego pelo que foi feito, a involuntária dor que existe em não querer liberar as obras para o mundo… porque sempre existe muito da gente ali.
O silêncio entre as duas obras não é ausência, mas a presença do invisível, do sensível. É como um resfriamento de motor, sabe? Algo que sustenta a possibilidade do novo e permite que ideias sejam amadurecidas, tecidas, costuradas.
Já me deparei algumas vezes com uma publicação que dizia que “A obrigação de produzir aliena a paixão de criar”. A gente, no fim, mente para si mesmo sobre produzir muito, performar, dar conta, agregar funções, transformar hobbies em trabalho. A gente só não pensa que, quase sempre, tudo que vira obrigação, com o passar do tempo, se torna tedioso.
Se o tédio na produção chegar e atravessar o coração, tudo pode desandar. O artista precisa produzir para viver e óbvio que viver inclui ganhar dinheiro, comer, bancar uma vida, pagar contas, mas o conceito de “viver” vai muito além disso.
Alexander McQueen, estilista britânico, era um artista acima de tudo. Extravasava as suas demandas emocionais em seus desfiles e criações de moda e quando precisou se moldar às grandes casas e ao sistema da moda, que exigia desfiles a cada tanto tempo, com tantas outras imposições, teve a sua saúde mental comprometida. Ele mesmo dizia que a fama o fazia mal.
McQueen, citado por Callahan, disse que “a raiva em meu trabalho refletia a angústia em minha vida pessoal […] as pessoas me viram fazendo as pazes com o que eu era na vida: meu lado mórbido, meu lado sexual. Tem sido sempre sobre a psique humana. Meu trabalho é como uma biografia da minha própria personalidade”.
Temos muitos nomes aqui para dar exemplo, de artistas que, em diferentes esferas desse universo, se relacionavam com a arte numa espécie de fuga da vida. Ou, num outro ponto de vista, convocatória de vida, em uma época em que performar nas redes sociais ainda nem era imaginável.
O caso de McQueen mostra o paradoxo do artista: o que a gente cria é, ao mesmo tempo, ferramenta de sobrevivência e fonte de renda, mas, infelizmente, fonte de desgaste. A passarela era um diário íntimo, onde ele imprimia suas dores, seus traumas e seus incômodos. Quando essa necessidade se encontra com as demandas externas do mercado, o universo interior de McQueen, que o permitia fantasiar novos mundos, entra em colapso.
Como falei, viver não se reduz ao pragmatismo de pagar contas. Para o artista, independentemente do gênero de atuação, viver é transbordar, dar formas a inquietações e traumas, externalizar sonhos, suspender a mente e desdobrar o corpo. Contudo, se tudo se torna automático, necessário, se passamos a ter que atender demandas de mercado, a gente perde a poética por trás do que nos convida ao ato criativo, nos transformando em mais uma parte da engrenagem capitalista que move o mundo.
Esse dilema atinge muitos artistas, que lidam com a criação como um modo de salvar-se do vazio da própria existência. Até que sentem-se sufocados pela expectativa de sempre precisar entregar algo novo, relevante, vendável.
Máquina nenhuma no mundo pode, de fato, substituir o que a gente faz. Contudo, o mundo não pode esperar que a gente seja capaz de entregar nada no ritmo de uma máquina. O tempo é aliado, o respiro é necessário. O ócio que precede a criação existe para que a gente seja, de fato, capaz de digerir o mundo e nos colocar acima do óbvio.
Esse ócio é criativo, parte do processo de criação, tempo útil para acumularmos forças para o próximo impulso, para ir além. Sob outro foco, se esse silêncio fosse respeitado e sustentado, talvez tivéssemos menos artistas reprimidos e mais luz e cores, mais poesia, mais gente pintando, cantando e musicando a vida. Precisamos disso!