É uma delícia nos inspirar em grandes nomes. A velha história do “sou o que sou porque vieram antes de mim” não é só sobre ancestralidade, família ou gerações, mas também sobre caminhos, sobre construir a própria vida respirando partículas daquilo que criaram antes de nós.
Na semana passada, falei sobre como devemos ser menos esponja e mais peneira, sobre como deveríamos ser críticos quanto ao que absorvemos, ao invés de ir no automático, para selecionar “realmente o que nos cabe e importa para cada um, enquanto indivíduo, sobre vestir, comprar, fazer, agir, reproduzir, exibir e propagar”.
A gente constrói o nosso repertório a partir de todos os pequenos e grandes detalhes da nossa vida e é por isso que, o quanto possível, devemos moldar o nosso redor. O meio em que vivemos influencia diretamente na nossa forma de pensar, de agir, de fazer, de comprar, assim como tudo o que vivemos, desde as coisas mais óbvias até o que fica escondidinho no subconsciente. Esse próprio repertório continua em construção, eternamente, enquanto estivermos vivos, todos os dias.
No Rio de Janeiro, dos dias 12 a 15 de Agosto, aconteceu o Rio Innovation Week. Convidada pela BRIFW, plataforma de moda, arte e inovação, estive presente no evento todos os dias. Testemunhei desde grandes debates sobre criatividade e inteligência artificial, até palestras sobre consumo, com a Thais Farage, minha ex-chefe.
Uma das mesas que mais estava ansiosa para assistir, como grande admiradora que sou, era a do Ney Matogrosso e do Arnaldo Antunes, mediada por Kenya Sade, no dia 13. Entre histórias, reflexões e memórias, muitas considerações sobre inovação, tema central da conversa. No fim, ainda tive o imenso prazer de ouvir os dois cantando a capela e emocionando o público.
Inclusive, é impressionante como o Ney Matogrosso, que acaba de completar 84 anos, continua tão afinado e com a sua voz tão potente, apesar da idade.. Não estou sendo etarista, é apenas um fato: as coisas mudam, é fisiológico, biológico, porque a idade interfere nas musculaturas e na perda do controle das cordas vocais, na capacidade respiratória, na forma como o som ressoa e, claro, na lubrificação da laringe. Penso isso sobre Mick Jagger também, todas as vezes que escuto “Sweet Sounds of Heaven”, música recente dos The Rolling Stones com a Lady Gaga.
Voltando: durante a fala deles, algumas coisas vieram à luz, já que tenho discutido muito, aqui, sobre consumo, redes sociais e nosso comportamento perante isso e o mundo. Quem sempre me lê, vai entender do que estou falando…
Em algum momento, a mediadora perguntou para Ney Matogrosso como ele lida com esse tempo das redes sociais, criando um diálogo com o novo trabalho de Arnaldo Antunes, intitulado “Novo Mundo”. Ney respondeu que, quando sente que a coisa começa a “cheirar mal”, ele deixa pra lá, para não se deixar contaminar tanto com esse sistema da nova geração onde existem tantas informações falsas e que estimula, de certa forma, as pessoas (e aí, posteriormente, ele incluiu a indústria musical) a produzir coisas muito semelhantes.
Ser inovador por natureza exige um esforço opaco, um reposicionamento constante e um olhar atento para si mesmo e para o mundo. Os dois, ao seu modo, são gênios inovadores. Ney Matogrosso, performático, teatral, irremediável, marcou gerações e continua influenciando gente por onde passa, principalmente depois do filme “Homem com H”, que coloca a sua história e a sua arte em destaque para uma nova geração que, muitas vezes, não o conhecia com profundidade antes. Arnaldo Antunes, dos Titãs e dos Tribalistas, é um artista-poeta, que domina as palavras e as redefine, para ser mensageiro de algo muito maior.
Quando questionados sobre serem essas personalidades inovadoras, Arnaldo disse que não gosta de ficar repetindo coisas e que essa é a função do artista: “não dar às pessoas aquilo que elas já têm estabelecido”, acrescentando que esse “é o papel da arte em geral”.
Uma outra fala de Arnaldo ficou ressoando para mim por um bom tempo. Ele disse que preza por subverter a linguagem em prol da expressão, que é assim que ele escreve. A partir disso, ele transforma as palavras em música e dá outra dimensão ao verbal.
Seria esse o papel do artista, mesmo que em outras esferas? Se apropriar do que precisa, para falar o que quer, dando uma nova dimensão para o que é a base da sua comunicação subjetiva?
Na quinta, dia 14, assisti a palestra das autoras Carla Madeira e Socorro Acioli, mediada pela Paula Taitelbaum. Entre relatos e histórias, Paula pergunta para as escritoras se o processo de escrever tem relação com a memória. Socorro Acioli diz que sim, que ela escreve sobre coisas que viveu e também sobre coisas que ouviu em uma mesa de bar, sobre coisas que viu por aí e que é influenciada, claro, pelos livros e filmes que leu.
Carla Madeira, por sua vez, disse que a escrita vem tanto da memória quanto da ausência: “a gente escreve sempre acionando coisas que a gente tem, no repertório que a gente tem, na bagagem que a gente tem, na experiência de afetos que a gente tem, o que é por aproximação, né? Ou mesmo pelo que você não teve.”
Enquanto a gente vive, constrói repertório. Precisamos, portanto, pensar na importância de ter um repertório diverso, para se construir, se atualizar, se manter vivo para além do óbvio. O que vemos, ouvimos, lemos, vivemos é o nosso repertório.
Podemos dizer que, assim como apontaram Ney Matogrosso, Arnaldo Antunes, Carla Madeira e Socorro Acioli, o artista se move nesse espaço de delicadezas, entre o que carrega e o que escolhe mostrar. Como se o objetivo fosse transformar tudo o que cabe dentro de si, sejam dores ou delícias, em matéria criativa, expandindo para o coletivo aquilo que é, inicialmente, tão íntimo.
Rosa Montero, em “O perigo de estar lúcida”, fala que “a criatividade salva da angústia, da dissociação e da amargura” e que “o ato criativo poderia derivar da capacidade de ativar um grande número de representações mentais simultaneamente, o que permitiria descobrir novas associações, novas analogias”. Talvez seja justamente aí que mora a força de um repertório diverso: ele não apenas nos alimenta como criadores e espectadores, mas nos mantém vivos, atentos e dispostos a olhar para além do óbvio.
Se o nosso repertório é tão importante, porque é quem a gente é e o que temos para nós mesmos e para o mundo, então vale preenchê-lo com tudo o que nos atravessa: o que fere e cura, o que provoca e acolhe, o que desafia e amplia o nosso olhar. Inovar, seja na arte ou na vida, é também um ato simples de existência de quem tem muita coragem e bem usar o repertório é um jeito de devolver ao mundo algo que passou por nós e foi transformado.
Vida renova repertório
