Como mães e pais, temos que falar com nossos filhos sobre isso sim.
Para, em primeiro lugar, protegê-los, e também tentar mudar essa história, diminuir esses casos e melhorar a sociedade como um todo.
Existe uma enorme e cruel contradição nos abusos sexuais contra crianças: eles são praticados muitas vezes por adultos em quem elas confiam, sejam da família ou amigos – pode ser um amigo, um tio, um vizinho, um primo e, embora o mais comum seja que o assédio seja cometido por homens, também a mulheres envolvidas em casos assim. E são pessoas em quem nós, os pais, confiamos também. É por isso que a gente ouve histórias tão tristes e difíceis de acreditar. Afinal, como pode aquilo ocorrer embaixo do nariz da gente, a gente não perceber? Ou por que a criança não nos falou nada?
Crie uma relação de confiança pela com seu filho
Para mim, depois de tudo que li, uma das chaves da proteção está justamente aí, em fazer com que a criança saiba que ela pode falar conosco sobre tudo. Que ela deve falar. E, quando ela falar, é importante ouvir, dar atenção e nunca, jamais, deslegitimar o que ela disse. Nunca se deve falar frases do tipo “você não está inventando isso?”, “você deve estar confundindo”, “fulano não faria uma coisa dessas”, “cicrano gosta de você, não te faria mal”… Tire essas frases da sua conversa pra ontem. Claro que criança imagina, fantasia, isso faz parte do desenvolvimento delas. Mas se ela disser “fulano me bateu”, “tal pessoa fez uma coisa esquisita”, dê ouvidos. Pergunte mais, entenda o que aconteceu, de preferência sem demonstrar muita preocupação ou raiva em um primeiro momento.
Fale sobre privacidade e sobre o corpo
Explique para seu filho desde cedo que o corpo dele é algo muito valioso e que ele precisa cuidar muito bem dele. Não só da higiene ou da alimentação, mas explique que há partes do corpo que são “íntimas” e que por íntimas o que se entende é que só ele (ou o médico ou você) podem tocar e pedir para ver. Que se alguém ficar insistindo em ver ou tocar ou fizer isso, ele precisa contar para você. E, inclusive – sim, eu sei que é a parte mais dura – pessoas muito próximas como tio, primo, vizinho também não podem pedir para tocar ou ver. Ele deve contar para você qualquer pedido ou coisa que acontecer e ele achar estranho ou não se sentir bem. Sem medo, sem ter vergonha. Explique também que é errado se alguém mostrar o corpo para ele (é que assédio não é só o ato sexual ou a carícia física. Pode ser alguém mostrando as partes íntimas, se masturbando ou pedindo para que seu filho faça algo assim).
Fale sobre o que pode parecer legal, mas é errado
Um dos jeitos que pedófilos fazem para atrair as crianças é oferecer coisas que elas gostem, como doces, guloseimas ou brinquedos. Explique que se alguém dizer coisas do tipo “se você me mostrar tal parte do corpo” ou “se você fizer tal coisa” ganha um presente não é legal e ela não deve fazer a troca. Até porque, o nome disso é suborno ou chantagem e é importante que eles não se deixem levar por situações assim para nada na vida.
“Não é uma questão de marcar um dia para falar de abuso sexual. É preciso ter uma educação aberta desde o berço, na qual a criança sempre, a todo momento, se sinta à vontade para falar sobre qualquer assunto. E na qual se ensine a lidar com o corpo e com a questão dos limites”, explica a psicopedagoga Neide Barbosa Saisi, professora da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica).
“Precisa ensinar limites em coisas básicas, como respeitar se ela não quiser beijar as pessoas, por exemplo. Ela tem que aprender que o outro não tem domínio sobre ela. Se ela sabe o que são limites, ela já responde a uma intromissão”, afirma.
A pedagoga e mestre em educação sexual Caroline Arcari explica que, ao falar especificamente sobre abuso sexual, é preciso usar a linguagem adequada para cada idade. E ser claro.
“É importante evitar termos muito abstratos. Por exemplo, dizer ‘se você se sentir estranho, ou se alguém fizer algo que te deixe triste’ etc. Porque quanto mais nova a criança, menos ferramentas ela vai ter para entender o que seria esse sentimento estranho, o que seriam esses atos que poderiam a deixar triste”, afirma.
Segundo ela, inicialmente a criança aprende que violência é algo muito concreto, que causa dor física: um beliscão, uma palmada, um puxão de cabelo. Logo, quando se fala de violência sexual, é preciso mostrar concretamente como ela pode acontecer.
“É importante que a criança saiba os que são partes íntimas. Ela precisa saber que ela tem órgãos genitais, que o bumbum e os mamilos são partes íntimas. Tem que ter nome ou apelido para as partes”, afirma.
Segundo as especialistas, é preciso dizer que essas partes não devem ser tocadas por outras pessoas. E que uma pessoa que a tocar está fazendo uma coisa errada.
Arcari diz ainda que é importante que os materiais didáticos usados – livros, vídeos – tenham representatividade, para que as crianças se identifiquem.
Ela vê um problema em um dos vídeos que têm sido muito compartilhados recentemente no WhatsApp – há apenas crianças brancas.
“É difícil encontrar materiais que tenham uma quantidade significativa de crianças negras. O material didático precisa refletir a diversidade que existe no Brasil.”
Educação e confiança
A baiana Ariane Carmo contou no Facebook como seus pais conversavam com ela de forma bastante objetiva – a postagem teve 11 mil curtidas e mais de 7 mil compartilhamentos.
“Uma amiga abriu debate sobre abuso sexual de crianças em seu perfil e muitas mulheres que participaram sofreram abuso na infância. Com tantos perigos e relatos desanimadores começa a parecer impossível proteger as crianças”, afirma.
“Uma das moças disse que simplesmente não há muito o que fazer. Nesse ponto, eu pensei: não, calma! Há. Sei que ela queria dizer que não há como garantir plenamente a segurança. Mas eu senti que devia relatar a estratégia da minha família para fazer um contraponto, dar uma esperança.”
“Meus pais me ensinaram o que era sexo e abuso sexual juntos. Minha mãe me disse que qualquer homem que tentasse fazer qualquer coisa comigo eu deveria contar pra ela e ela me protegeria, inclusive meu pai – isso na presença dele”, escreveu ela.
“Ela apontou pra ele. Na frente dele. Meu pai jamais me fez ou faria mal, e também não se ofendeu. Ele sabia o que eles estavam fazendo, que estavam criando o vínculo para que eu sempre sentisse segura e me ensinando a me proteger”, relatou.
“Eles me disseram que nunca seria culpada e não deveria acreditar se me dissessem que minha mãe ficaria brava ou me iria me castigar. Que ela me protegeria e que eu nunca deveria ter nenhum segredo com nenhum adulto, pois adultos não tem segredos com crianças. Que sempre que alguém falasse ou fizesse algo dizendo que eu não podia ‘contar pra mamãe’, imediatamente eu deveria falar.”
Arcari concorda sobre mostrar que não deve haver segredos e que os limites tem que ser respeitados por todos. “O abusador pode ser um estranho, mas raramente é. Normalmente é alguém da família, um amigo ou conhecido”, afirma ela.
Amor e carinho
Ariane diz que nunca teve nenhum tipo de trauma por ter tido essa conversa com os pais.
“Não tive uma iniciação sexual precoce por saber o que é sexo, nem tive algum tipo de bloqueio por me avisarem o que é abuso. Só fui protegida de abusadores”, escreveu.
A pedagoga Caroline Arcari diz que, para evitar que a criança fique com muito medo ao se falar da possibilidade de alguém machucá-la, é preciso contextualizar a conversa e falar mais sobre os aspectos positivos da interação com adultos e outras crianças.
“Tem mostrar o que é bom na interação com um adulto. A parte positiva da convivência, para ela não achar que todo adulto é ruim. Para que a criança saiba o que é uma demonstração de amor e carinho e o que é abuso”, afirma a pedagoga Caroline Arcari.
Ariane Carmo diz que o motivou a escrever sobre sua educação foi notar que os pais “têm receio de falar claramente com seus filhos, como se eles fossem incapazes de entender – não só sobre abuso”.
“Quando você senta uma criança e conversa com ela de forma clara, seja sobre o que for, sobre a importância do estudo aos riscos que o mundo oferece, incluindo abuso, ela vai entender.”
“Eu sei que muitos pais até conversam com seus filhos, mas o que eu gosto de destacar é que meus pais fizeram isso juntos, e que foram claros em definir que me protegeriam de qualquer um, inclusive um do outro. Nenhuma mãe ou pai espera que seu ou sua companheira(o) seja um abusador. E meus pais, claro, não eram”, conta ela.
“Mas se houvesse qualquer risco, a clareza daquela situação me daria confiança. Porque se sua mãe deixa claro que nem seu pai pode te fazer mal, você sabe que ninguém pode. A maioria dos abusadores é parente ou amigo da família que usa da confiança para praticar o crime. É preciso que a criança saiba que está segura – seja de quem for.”