O contato virtual diluiu a maturação do pensamento e o senso crítico, diante da exigência de imediatidade na resposta aos estímulos. Era mais fácil deixar o telefone tocar do que, hoje, é não olhar os vários avisos de mensagens recebidas pelos aplicativos.
As redes sociais (e, sim, a Pandemia) mudaram comportamentos e diluíram vínculos e o modo de se relacionar. As rodas de conversa e os longos diálogos ao telefone foram substituídos por curtas mensagens, digitadas. Significativa parcela do convívio pessoal foi convertida em virtual. Hoje, já vivenciamos certa confusão entre o mundo virtual e o real, numa mistura de fake news e mensagens curtas demais para passar conteúdo, como se a informação pudesse ter valor sem os seus motivos e causas.
Parece que as ideologias e os vínculos mais profundos erodiram, dando lugar a um tipo de praticidade e urgência que podem parecer boas pela agilidade, enquanto pecam pelo mesmo motivo.
De certo modo, temos sido impacientes com a fala dos outros. Já nas primeiras palavras, decidimos ser contra ou a favor e, a partir desse momento, não conseguimos mais prestar atenção no que nos é dito, por dificuldade de concentração, falta de empatia e, sim, também, por um pré-conceito negativo sobre qualquer discurso que não seja exatamente vinculado ao que pensamos. Ou reproduzem e aderem ao que queremos ou somos contra.
De repente, nos transformamos de sujeitos sociáveis em pessoas cada vez mais individualistas, como se o fato de ser indivíduos e sujeitos de Direito nos distinguisse dos seres sociais que, por essência, somos. A humanidade é gregária, convivendo com outros, embora essa convivência tenha se transformado muito nos últimos anos: no lugar de ir ao mercado e loja, as compras são feitas por aplicativos; não conversamos mais com vendedores e outras pessoas, pois temos menos tempo; algumas aulas e trabalhos têm sido virtuais, etc. Há vantagens na economia de tempo em deslocamento, mas há tendência ao isolamento e à dificuldades de relacionamento mais profundo com os demais e de se desenvolver diálogos naturais, sobre assuntos sérios ou lúdicos, que habitualmente nasceriam exatamente dessa convivência próxima. Que falta faz um abraço, um sorriso, um olhar!
Noutro foco, reproduzir mensagens recebidas não é uma obrigação! Isso é algo que merece isolada reflexão, pois parece que temos o dever de repassar qualquer informação recebida, independentemente da fonte primária. Não avaliamos a origem e nem sempre exercemos senso crítico sobre o que recebemos, repassando, sem dó, a terceiros, que farão o mesmo. Não somos donos ou produtores de notícias e, como meros usuários de aplicativos, não temos o preparo, a formação e a função de informar. É como se os dedos fossem mais rápidos do que a mente e tivessem a capacidade de processar informações. Quando se percebe, já se encaminhou a mensagem. Então, não raro, rapidamente vamos apagar o que enviamos. Quem nunca passou por isso?
Esse contexto representa um dos motivos da livre circulação de mensagens e informações sem sólida base. Isso, no entanto, é mais um problema de comportamento impulsivo, relacionado ao modo com que adoecemos, social e mentalmente, do que questão que exija regulação por lei. Sob outro foco, o grande perigo não está nas mensagens encaminhadas sem bom motivo nem nas tortas informações repassadas adiante. Como sociedade, sempre fizemos isso: se chamava “fofoca” – lembram-se? Fofocar era falar da vida alheia, agir com aleivosia contra quem lhe confidenciou segredo, inventar um veneninho para prejudicar terceiro e passar adiante algo que ouviu de alguém, sem checar a verdade ou se importar com ela. A fofoca não era punida ou regulada por lei, salvo quando se enquadrava nas condutas previstas como crime, nos casos de difamação, injúria ou calúnia.
A rigor, o que tivemos foi mudança do instrumento, da conversa falada para a digitada. É mais questão de forma do que de conteúdo. E, reflitamos, regularíamos o uso do instrumento, no lugar de cuidar das condutas sociais que interessam ao Direito e que, por isso mesmo, são sujeitas à normatização? É que, em essência, só há relação jurídica entre pessoas, pois os objetos são apenas isso, coisas e motivo do seu interesse, cabendo ao Direito regular as regras sociais que sejam qualificadas pela norma jurídica. Não se vai regrar a internet, por si só, pois isso não teria sentido: seria como regular a máquina de escrever e o papel datilografado. A internet é só objeto da relação entre as pessoas e esta já é regulada por regras sociais ou legais.
Nessa linha, a regulação das redes sociais não pode ultrapassar esse tênue limite decorrente apenas das novas ferramentas digitais ou virtuais, sem se revelar reguladora da liberdade de cada um em falar o que seja, seja por pensamento próprio ou por reprodução do que ouviu.
Ainda deve prevalecer aquela máxima do Direito Romano, sintetizada na ideia de “honesto viver, não lesar a outrem e dar a cada um o que é seu”. Na mesma linha, a cada um conforme a sua sentença, por responsabilização da própria conduta, ainda é algo que prevalece e se justifica. Isso é muito diferente do mundo que se avizinha, com a chegada da inteligência artificial, por parecer que seria infalível e, para a humanidade que a cria, pela sua surpreendente característica de auto aprendizado – e, sem limites.
No campo da política, temos ainda o inegável fato de que parece haver pessoas crendo que opinar nas redes sociais corresponda a real manifestação de cunho político e isso tem enfraquecido a Política, aqui e no mundo. Aderir a uma mensagem de aplicativo e reproduzi-la não tem o peso ou o significado da manifestação nas ruas, como ocorreu em 1968, na França, em 2013, no Brasil, ou na Primavera Árabe e em outros eventos afins, pelo mundo.
“É proibido proibir”, ecoava a letra da canção de Caetano. Proibir foi verbo empregado para gerar a condenação de Giordano Bruno, de Galileu Galilei e de Sócrates, como instrumento para calar pensadores, filósofos, poetas e escritores. Sufocou vozes, vaias e aplausos. Engessou grupos sociais, matou a criatividade e enforcou a liberdade.
Que não corramos o risco de ir além da responsabilização dos excessos e do exemplo da União Europeia, que deveres criou para as redes e suas mantenedoras, como a de indicar a fonte da informação (rotulando os anúncios e quem os promove), criar banco de dados com as propagandas veiculadas e vetar publicidade dirigida às crianças, além de outras no mesmo sentido, tudo, ao que parece, alvitrando aumentar a transparência e a segurança para o usuário.
Nesse contexto, não se regula a mensagem em si, nem a liberdade de quem dela faz uso. O livre pensar não foi atingido, a liberdade de pensamento não foi acorrentada, o senso crítico não foi calado e a liberdade de veiculação de informações não foi aprisionada. Esses dogmas da liberdade devem ser sempre enaltecidos, sob pena de transformar tudo e a nós mesmos em simples reprodutores de algo que seja imposto, de cima para baixo, nos condenando a repetir palavras, frases e comportamentos e nos relegando ao papel de meros repetidores, mais ou menos como, por tanto tempo, se obrigou pássaros a fazer, reproduzindo frases sem entender o seu significado e alcance: currupaco, currupaco.