O mundo contemplou estarrecido a invasão do Capitólio em Washington por seguidores do presidente Donald Trump, por ele incitados a, por meio da ameaça e da violência, obstar a proclamação da vitória do presidente eleito Joe Biden. Desde a ultimação das eleições presidenciais nos EUA, processadas pelo complicado sistema eleitoral daquele país, Trump não cessou de proclamar aos quatro ventos que tinha havido fraude, intentando dezenas de procedimentos judiciais com o objetivo de anular a eleição de Biden e Kamala Harris e criar as maiores dificuldades no período de transição do poder ao president elect. Não logrou sucesso em nenhuma instância. A proclamação do resultado no Congresso representaria a pá de cal nos desvarios de Trump, o que o levou a fazer um discurso divulgado pela mídia americana e retransmitido para o mundo no qual conclamava correligionários a impedir a qualquer custo a sessão no parlamento americano, tomando de assalto o Capitólio.
Em sua conturbada presidência, posto a que foi guindado com grande apoio popular e recebendo suporte de grupos de milicianos, neonazistas, armamentistas, da KKK e de outros supremacistas raciais, Trump, único presidente americano a sofrer dois impeachments, vem sendo reconhecido como o pior entre todos os que já ocuparam a cadeira no Salão Oval da Casa Branca. O presidente americano, globalmente visto como o homem mais poderoso do planeta, aquele que, ao apertar um botão pode estar decretando a implosão da Terra e, como consequência, o fim da humanidade, pode representar também uma esperança de dias melhores não só para seu próprio país como para o mundo. Mas assim como pode ser o grande benfeitor, pode igualmente ser a mais temível ameaça.
Sobre Trump, cuja mandato está a horas de expirar com o processo de impedimento a depender de decisão do Senado, pois que na Câmara o impeachment já foi aprovado, o excelente colunista de VEJA Roberto Pompeu Toledo, em seu derradeiro artigo intitulado “Acabou, mas…” (VEJA, ed. Nº 2718, 23/12/2020), cunhou oportuna reflexão que reproduzo:- “Felizes são os americanos que, ao se livrar de Trump, se livrarão de igual fenômeno.” (comparação com Bolsonaro, esclareço. E prossegue:) -“ ‘Um dos piores aspectos da Presidência Trump foi o modo como ele consumiu todo o espaço de nossa banda larga mental, tornando impossível pensar em outra pessoa ou outra coisa’, escreveu o colunista (conservador) Bret Stephens, do The New York Times. Stephens comparou o flagelo Trump a ‘um longo e doloroso acesso de soluços, um mosquito que zumbe no ouvido quando se está a ponto de pegar no sono, um alarme de carro que não para’ “.
Na sua despedida de VEJA, Pompeu Toledo traça um paralelo entre Trump e Bolsonaro, dizendo, entre outras coisas, e citando José Simão, da Folha de São Paulo:- “Resumo de 2020: a gente não merecia Bolsonaro e Covid ao mesmo tempo. Até no Egito foi uma praga por vez!”.
O Brasil, país que em 1959 André Malraux taxou de “improvável”, está sendo presidido por um político de trajetória apagada até 2018. No Exército, não conseguiu passar do posto de capitão.
Sabe-se que o oficialato começa com a troca do espadim de cadete pela espada ao ser declarado aspirante a oficial, que é graduação como praça especial, etapa que precede a ascensão ao primeiro posto, segundo-tenente. Segundo e primeiro-tenente são postos de oficial subalterno. Quando o primeiro-tenente é promovido a capitão, sobe à condição de oficial intermediário entre oficial subalterno (tenentes) e oficial superior (sucessivamente, major, tenente-coronel e coronel). Até o posto mais alto de oficial superior (coronel), o oficial do Exército integra a Arma (Infantaria, Artilharia, Engenharia, Cavalaria) ou Serviço (Intendência, Saúde) de que é egresso. De coronel, último posto da ativa antes de passar para a reserva, por indicação política e de acordo com posição no Almanaque, ascende ao generalato (brigada, divisão, de exército, último e mais elevado posto da carreira militar). Ao chegar a General de Brigada, termina sua ligação à Arma ou Serviço de que veio egresso. No Exército, um coronel médico (integrante dos quadros do Serviço de Saúde) será general, e não mais estará incluído no Quadro de Saúde. Este é o caso do general Eduardo Pazuello, atual ministro da Saúde do Brasil. O mesmo ocorre com o vice-presidente general Hamilton Mourão, egresso da Arma de Artilharia, e com todos os generais que ocupam cargos no governo Bolsonaro.
Depois de ter sido reformado como capitão (oficial intermediário), Bolsonaro enveredou na política, cumprindo mandatos no Congresso Nacional como deputado federal até ser escolhido como adversário principal do Partido dos Trabalhadores nas eleições presidenciais de 2018.
Em segundo turno, tornou-se única opção eleitoral capaz de tirar o Brasil da hegemonia lulopetista. Portanto, a pergunta que nunca se quis calar é se Jair Bolsonaro foi escolhido pelos seus próprios méritos, ou se foi apenas a vontade do eleitor brasileiro de se afastar dos rumos a que o PT até então levara o país.
No Congresso, a atuação de Bolsonaro não registra nenhum feito merecedor de destaque. A mais lembrada intervenção do deputado Bolsonaro foi na votação do processo de impeachment da então presidente Dilma Roussef. No momento de votar, Bolsonaro, da tribuna da Câmara e sob foco de toda a mídia, declarou-se a favor do impedimento; no ensejo, enalteceu a memória de Brilhante Ulstra, um dos mais temidos torturadores de presos políticos no período de governo militar.
Com a derrota de Lula/Haddad em 2018, o capitão/deputado Jair Messias Bolsonaro tornou-se presidente da República Federativa do Brasil. Constitucionalmente, além de chefe do Poder Executivo nacional, tornou-se comandante supremo das Forças Armadas (Marinha de Guerra, Exército, Força Aérea Brasileira). É como se o capitão tivesse sido promovido a Marechal – em que pese tal posto não mais existir -, que seria mais alto que General de Exército, Almirante de Esquadra e Tenente Brigadeiro. A que impensáveis alturas chegara o capitão!
A cada desastrada intervenção de Bolsonaro mais se evidencia um desequilíbrio mental proveniente quiçá da síndrome do “quem nunca comeu mel, quando come se enlambuza”. A forma como trata os generais – hoje seus subalternos – bem revela traços dessa megalomania. “Meu comando, minhas ordens, minha decisão, minha chefia”, são expressões constantes no dia a dia bolsonariano. Sem contar com despautérios tais como sua recusa em usar máscara, menosprezar o isolamento social e outras medidas profiláticas, politizar a imunização contra a Covid 19, escancaradamente minimizando os efeitos da pandemia com um negacionismo recorrente reprovado até pelo Papa Francisco. Ao agir com tanto desacerto, Bolsonaro deixa escapar a possibilidade que a vida lhe deu de ocupar um lugar de respeito na memória do povo brasileiro.
No caudaloso rio da vida, qualquer pessoa tem seu lugar na história. Pode vir a ser figura destacada no cenário político, artístico, científico, esportivo, seja lá o que for, mas a grande maioria irá viver de modo anônimo. Ninguém deixa de ser importante, pois toda vida importa. Não deixa de ser necessário, por mais restrito que seja o âmbito de sua atuação, do mais humilde trabalhador ao detentor de prêmio Nobel ou medalhista olímpico. O milagre da vida começa no instante mesmo da concepção. Vindo à luz, todo ser humano nasce inteiramente dependente da assistência dos outros durante anos até adquirir a capacidade de viver de seus próprios recursos. A interdependência, contudo, persiste durante a trajetória de cada qual. Como disse o poeta inglês John Donne, nenhum homem é uma ilha isolada; todos fazem parte do grande continente que é a humanidade. Do mesmo modo como todo o continente fica menor quando um torrão se desprende e rola para o mar, assim todos ficam menores diante da morte do semelhante. E arremata aconselhando a que não se pergunte por quem os sinos dobram, eis que dobram para cada um de nós.
Rui Guilherme
Juiz de Direito e Escritor.