O Poder Judiciário deve nos assegurar a imutabilidade das suas decisões, tornadas definitivas. Diz-se que essas, perenes e não mutáveis, são aquelas “transitadas em julgado”, pelo decurso dos prazos recursais.
Todavia, hoje, 08 de fevereiro de 2023, sobre tema de natureza tributária, o Supremo Tribunal Federal – STF decidiu que decisões judiciais já definitivas podem vir a perder eficácia e ser revistas, a partir do momento em que a Corte modifique o seu entendimento.
Podemos considerar que, se a Justiça, no passado, protegeu o contribuinte e o dispensou de pagar tributo cobrado, a partir de eventual mudança de entendimento da Corte, aquele mesmo contribuinte poderá vir a ter que pagar o tributo.
O caso foi apreciado com Repercussão Geral (Temas 881 e 885), significando dizer que o vigor da decisão se espraia sobre todo o Sistema Jurídico, atingindo a todos, indistintamente. Ademais, ao não modular os efeitos do julgado, a Corte deixou em aberto a possibilidade de órgãos cobrarem os tributos já a partir da publicação da decisão em questão.
Ocorre que a “coisa julgada” está expressamente garantida no texto constitucional, no artigo 5º, inciso XXXVI e, antes de avançar, convém logo lembrar que este artigo é o primeiro do Título II, que trata dos “Direitos e Garantias Fundamentais”.
Portanto, a Constituição Federal comete ao tema a maior relevância e o localiza no seu texto antes, muito antes, de muitas outras questões (dando-lhe maior relevância do que a aspectos tributários, estes residentes bem mais ao final da redação constitucional).
Um dos argumentos para aquele julgamento foi a igualdade de todos os contribuintes. Todavia, a igualdade é vista pela Constituição Federal como “Direito e Garantia Fundamental” e protegida, expressamente, no artigo 5º, que iguala a todos perante a lei, e que, no seu inciso XXXVI estatui que, para alcançar tal propósito, também devem ser respeitados o “direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.
Noutras palavras, se a legislação nova deve respeitar as situações estabilizadas, já constituídas plenamente, o Judiciário, que é o seu intérprete e aplicador, tem o múnus de garantir a efetividade dessa construção constitucional e, por suas decisões, prezar por tais direitos e garantias fundamentais.
Devemos respeitar as decisões judiciais e delas recorrer, quando gerarem discordância. Todavia, do ponto de vista acadêmico, é crível que o jurisdicionado não pode ficara a mercê dessa volatilidade, pois isso gera insegurança jurídica, mormente quando as normas legais não foram modificadas. Insegurança Jurídica rima com injustiça.
Imaginemos qual seria a segurança do sistema empresarial, bancário, do agronegócio, das importações e exportações, tributário da União e dos demais entes federativos, penal, etc, se a coisa julgada de nada servisse como norteadora da segurança jurídica em nosso cotidiano.
San Tiago Dantas ensinava que “cada homem vive mais tranquilo sobre o seu dia seguinte, quando ele já tem uma ideia do modo por que a sua própria situação individual será julgada”. Dizia, ainda, que “justiça e segurança são por isto mesmo as duas finalidades do direito”.
Sobre os precedentes, que refletem, decerto, a alta importância da coisa julgada, objeto deste artigo, o prestigioso Conselho Nacional de Justiça – CNJ, pela Recomendação n. 135, de 09 de setembro de 2022, recomendou que o sistema de precedentes seja obedecido pelos tribunais, dizendo o referido texto, no artigo 1º, que “o sistema de precedentes representa uma nova concepção de jurisdição, em que o Poder Judiciário procura não apenas resolver de modo atomizado e repressivamente os conflitos já instaurados, mas se preocupa em fornecer, de modo mais estruturado e geral, respostas às controvérsias atuais, latentes e potenciais, de modo a propiciar a efetiva segurança jurídica.” No seu artigo 8º, diz o texto da referida Recomendação: “Os precedentes devem ser respeitados, a fim de concretizar o princípio da isonomia e da segurança jurídica, bem como de proporcionar a racionalização do exercício da magistratura.”
Ademais, o mestre Canotilho já disse que “o homem necessita de segurança jurídica para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente a sua vida. Por isso, desde cedo se consideravam os princípios da segurança jurídica e proteção à confiança como elementos constitutivos do Estado de direito. Estes dois princípios – segurança jurídica e proteção à confiança – andam estreitamente associados”, concluindo pela “previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos atos”.
José Afonso da Silva ensina que “a segurança jurídica consiste no ‘conjunto de condições que tornam possível às pessoas o conhecimento antecipado e reflexivo das consequências diretas de seus atos e de seus fatos à luz da liberdade reconhecida’. Uma importante condição da segurança jurídica está na relativa certeza que os indivíduos têm de que as relações realizadas sob o império de uma norma devem perdurar ainda quando tal norma seja substituída”.
Noutro foco de análise, consta no site do STF – Supremo Tribunal Federal: “Cármen Lúcia, Barroso e Fachin reforçam importância do respeito aos precedentes qualificados. Em evento organizado pelo Supremo e pelo STJ, a ministra e os ministros do STF afirmam que o sistema traz mais segurança jurídica e eficiência ao Judiciário. 30/11/2022”. E mais: “não há verdadeira justiça quando o Judiciário decide de forma não equânime sobre os mesmos fatos. “Isso tem nome: insegurança jurídica”, frisou”. No texto, ainda se lê: “que o Judiciário vive um processo vertiginoso de ocupação de espaço na vida brasileira, desde a Constituição de 1988, gerando um processo dramático de judicialização da vida.”
Não estamos, aqui, abordando o caso concreto, mas tecendo considerações mais amplas sobre o significado daquela decisão, na medida em que possa vir a ser o prenúncio de flexibilizações que gerem instabilidade no Sistema e insegurança jurídica, com condenações de quem outrora foi absolvido, revisão de casos já decididos em prol de consumidores e hipotética devolução de dinheiro por quem já foi indenizado, etc.
No universo onde as fórmulas devam seguir padrões estáveis de segurança e estabilidade, mexer nos ingredientes pode gerar consequências imprevisíveis, filosófica e juridicamente, com reflexos, diretos ou indiretos, na atração de investimentos estrangeiros, nas cadeias produtivas e na criação de empregos, nas relações bancárias, no mercado de capitais e na vida de cada brasileiro.