Estamos envoltos em eufemismos, onde há forças de paz que fazem guerra. Para combater ditaduras antes amigas e proteger civis, invadiram países e bombardearam aldeias onde civis também foram vítimas, incluindo crianças. Acostumamo-nos com celulares furtados, fraudes em sistema bancários e homicídios diários. Há pouco tempo, pessoas consumiam bebidas e petiscos enquanto um corpo jazia no chão do estabelecimento.
O mundo real é chato, insistentemente cruzando o batente das portas, invadindo a paz dos nossos lares e se imiscuindo nos nossos momentos de lazer… Tudo ocorre com tanta naturalidade que nem perguntamos mais quem está dando os tiros que deveriam atrapalhar o nosso sono.
Em momentos graves e nos quais a opinião pública se mobiliza, como nesse duplo assassinato na floresta, aumenta a importância da resposta, sobre como se pode exigir o máximo de certos órgãos públicos e carreiras de estado, há muito esvaziados?
Consta que o IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis “perdeu 58,7% dos servidores em 20 anos”, como visto no site do jornal Metrópoles. O INCRA também enfrenta problemas e chegou a suspender atividades, em maio deste ano, como amplamente divulgado na imprensa. É de 45% o déficit de auditores fiscais do Ministério do Trabalho, com “redução de quase 70% dos recursos orçamentários”, como consta no site Rede Brasil Atual. Nos últimos anos, foi descumprida a Emenda Constitucional 80/2014, que determinava que em 8 anos houvesse Defensores Públicos em todas as Comarcas do país – algo como um para cada magistrado (e a União e os Estados e Distrito Federal se humilham quando não cumprem as regras e são obrigadas a agir, por meio de decisão do STF, em sede de ADPF – Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental).
Acaso se acredita que a população se esqueceu da chacina dos 4 funcionários do Ministério do Trabalho e Emprego, ocorrida em Unaí – MG, em 28 de janeiro de 2004, durante fiscalização rotineira em fazendas da região? O povo bem se lembra da morte do Chico Mendes (1998), seringueiro, sindicalista e ativista – que atuava na defesa dos seringueiros. Também não passou em branco o assassinato de Dorothy Stang (2004), que defendia o direito à terra para os camponeses e intermediava conflitos fundiários. Além desses, há outros casos, como a morte de agente do IBAMA, em Roraima, no ano de 2015 e a emboscada que outros sofreram no Maranhão, em 2020.
São pequenos exemplos, que se somam a tantos outros, nos vários seguimentos e com inúmeras profissões, nos diversos entes federativos. No universo estatal e na realidade das pessoas, revela-se o que fizeram sucessivas gestões, que negligenciaram tanto necessidades do povo quanto das próprias instituições, entidades e servidores, estruturantes da própria organização estatal.
É como se o Estado se mutilasse.
Lembram-se daqueles brinquedos que vão se desmontando, conforme deles se retira peças, até que a estrutura desabe? Pois é, estão brincando assim, com o Estado e, enquanto se retiram peças humanas e investimentos, não há como se exigir o máximo. Essa equação disforme interessa a muitos…
Noutro foco, para que legislar se normas não são cumpridas? Quem ganha com o engodo? Falam em desmatamento ilegal e voz estrangeira grita brados conservacionistas… Mas, para combater isso, precisamos de estrutura, tecnologia e mais fiscais, multas e punições – se isso não desagradar a nebulosos grandes interesses, nacionais e estrangeiros.
Na Cúpula das Américas, o Brasil e os EUA anunciaram a criação de grupo de trabalho para “reverter o desmatamento na Amazônia brasileira e em outro biomas”, fato que nos deu a esperança de que a expressão “outros biomas” viesse a permitir também o reflorestamento dos EUA, que já ocuparam o topo do ranking da perda de cobertura florestal. Aliás, no contexto, é importante considerar que, em 2020, os EUA foram 10 vezes mais poluentes do que o Brasil (“Brasil: 467 milhões de toneladas de CO2 x Estados Unidos: 4 bilhões de toneladas de CO2” – CNN Brasil).
O Estado mínimo nos deu essa desestruturação constante e aparentemente não percebida. Esvaziou-se a capacidade de se fiscalizar os infratores ambientais, de se otimizar a regularização fundiária, de se fiscalizar os que descumprem leis trabalhistas e, quiçá, com trabalho escravo etc. Este Estado mínimo, desmontado, falido, enfraquecido, dependente e escravo de políticas de financiamento e de crédito, nos mostra “o mínimo”, quando deveria nos dar a excelência, o máximo e o melhor.
Povo em solo rico não pode aceitar “o mínimo”, como se fosse esmola ou favor. O Estado deve ser excelente e incentivar a iniciativa privada, fomentar trabalho, emprego, saúde, educação e acesso à justiça, fiscalizar e punir com efetividade os infratores ambientais e os demais descumpridores da lei, ao mesmo tempo premiando os que a cumpre, dando-lhes paz e segurança – coisas difíceis, nestes tempos.
Assusta, contudo, que isso pareça menos importante do que o resultado de décadas de gestões que levaram o Brasil a usar 50,78% do Orçamento Federal para o pagamento de juros e amortização da Dívida!
Sim, em 2021 o pagamento da dívida superou mais da metade do orçamento. Em resumo: de tudo o que geramos com o pagamento dos tributos, metade vai simplesmente embora. Fala-se muito na atração de investimentos, mas não fica aqui o que atraímos. Retorna às origens, com os lucros, enquanto aqui continuamos a ouvir que não há recursos para a saúde, para a educação, para a previdência e para se investir nos órgãos da estrutura orgânica do próprio Estado e dos seus agentes políticos.
O Estado fraco interessa aos países fortes. Na sua fraqueza, como atender ao que se propôs e fortalecer as suas instituições policiais, modernizar as suas Armas, cuidar de moradia, saneamento, saúde etc e ainda fomentar a pesquisa e dar às mentes privilegiadas de muitos brasileiros as condições de elevar à enésima potência o seu poder criativo e empreendedor? Pequenos e singelos exemplos temos com os projetos do Proálcool e do Gurgel Itaipu, modelo de carro elétrico apresentado em 1974.
Enterraram a pureza dos projetos nacionais diante das dominantes forças contrárias estrangeiras. Lá se vão quase 50 anos e, hoje, lemos que o carro elétrico mais barato à venda no Brasil custa mais de 140 mil reais… O filet mignon será servido noutras mesas, como sempre, nos faustosos banquetes, para poucos convidados, enquanto parte do povo luta para ter pão para comer – e não os utópicos croissants referidos por Maria Antonieta.
Noutro artigo dissemos que “se uma casa com 2 quartos não atende bem a 10 moradores, os atenderá melhor se a reduzirmos para 1 quarto? Estamos falando de um sistema público capaz de atender a 200 milhões de brasileiros”.
Um dia entenderemos o quanto foi desconstruído do país e, enquanto isso, prossegue o trabalho das décadas de desestruturação.
A quem interessa um Estado tão mínimo, que sequer cuide das suas pilastras? A construção vai se acabando aos poucos, do madeiramento dos telhados às infiltrações nas paredes e, esse Frankenstein estatal, descaracterizado pelo mínimo dos mínimos na sua própria estrutura e essência, atende menos e afeta a si próprio, cada vez mais se parecendo com abandonado prédio tombado, prestes a desabar.