A maré começa a encher. Ondinhas bem educadas, quase musicais, lançam água e espuma rendada na areia, quase beijando enormes pedras adormecidas ao pé do barranco que marcava fronteira entre a Praia Grande e a Prainha. Nesse promontório ficava a casa branca do Tio, onde se destacavam em vermelho vivo as esquadrias, portas e janelas, além das colunas do telhado do pátio onde as crianças iriam aprender a dançar ao som da vitrola de corda que tocava discos 78 r.p.m. de música americana.
Os guerreiros eram o Pai e o Tio. Os dois, advogados na capital. O segundo, muito bem sucedido, era, além de profissional competente, pessoa bafejada pela sorte. Ainda cursando a Faculdade, conseguira estagiar num dos mais poderosos escritórios de advocacia da capital. O dono do escritório tivera um único filho, o qual, seguindo os passos do pai, formara-se em Direito. Diferentemente do genitor, o jovem passara aos trancos e barrancos no curso de graduação. Inscrito na Ordem, nem por isso submeteu-se à rígida disciplina imposta pelo pai; preferiu cercar-se de jovens da alta sociedade, tornando-se frequentador do Amazon Bar no Grande Hotel, em noitadas no mais das vezes estendidas aos prostíbulos. Com isso, o velho causídico, muito, mas muito rico, acabou mudando-se com todos para o Rio de Janeiro. O filho estroina, claro, foi a tiracolo, mas na efervescência das noites cariocas acabou se perdendo de vez. Dizem que, depois de morto o pai, o jovem prodigamente dissipou toda a herança, terminando seus dias como morador de rua.
Ao transferir-se para o Rio, o velho causídico deixou o escritório, com toda a fabulosa clientela, de mão beijada para o Tio. Este, já advogado sênior na firma, dedicado e tão responsável quanto sério, bom administrador, formou uma boa equipe e deu seguimento à militância forense de seu ex-patrão. Casou com moça de família ilustre, filha e sobrinha de desembargadores, com a qual teve numerosa prole.
O Tio e o Pai eram concunhados: a mulher do Pai era irmã mais velha da esposa do Tio. Embora tivessem a mesma profissão e conquanto fossem bons amigos, o Tio não cogitou de chamar o Pai para sua equipe de advogados. Sabia que a altivez do Pai não lhe permitiria engajar-se na firma como subalterno do concunhado. O Pai era poeta, sonhador, idealista, intelectual de mão cheia. Nascera em berço esplêndido, filho de seringalista e poderoso comerciante, mas cedo falecido, deixando numerosa prole. Destacara-se na política, respeitado e festejado nos comícios como inspirado orador. Sua honestidade inabalável jamais lhe permitira coonestar com práticas que não fossem cem por cento virtuosas. De tudo, acabou afastando-se decepcionado da corrida pelas urnas, dedicando-se mais ao magistério e ao jornalismo e fazendo da advocacia uma atividade que pouco ou nada contribuía para sustento próprio e da família.
Em fase dura da vida na qual o Pai estava em franca oposição a antigos aliados da velha política, sofreu tenaz perseguição dos ex-aliados e detentores do poder. Não podendo expor-se ostensivamente, a si e à sua firma de advocacia, nem por isso o Tio deixou de veladamente ajudar à família do Pai. Sem o conhecimento deste, fez chegar à mulher dele coisas necessárias até à subsistência básica, furando o cerco dos agentes de polícia destacados para fazer cerco de fome à casa do Pai.
As famílias passavam férias de julho na Ilha. O Tio e os seus, na linda propriedade no topo do promontório, com vista para a Praia Grande e Prainha. O Pai, em casa na estrada, bem mais modesta.
O Pai nunca teve carro próprio. O dinheiro não dava para comprar automóvel, artigo de luxo que só os muito abastados podiam ter. O Pai nunca ligou para isso. Nem mesmo nos poucos anos em que os ventos da política sopraram favoravelmente, dando-lhe cargo com direito a veículo com motorista, o Pai nunca deixou de andar a pé ou de ônibus. – “Tudo passa”, dizia. – “Acaba meu tempo nesse cargo e lá vou eu de volta a andar a pé ou de ônibus”, dizia, dispensando carro e chofer. –“Então, é melhor não se apegar a esses luxos passageiros.”
O Tio enricara. Seu primeiro automóvel fora um pequenino Austin inglês. Sua família crescera e precisava de carros maiores. Foi assim que comprou a camionete Plymouth, carrão americano em que cabiam mulher e os quatro filhos, dotado de um amplo bagageiro. A cor, só podia ser azul-marinho, cor do Clube do Remo, pelo qual era apaixonado e que viria a presidir. Comprara também a casa de praia onde estavam passando férias de verão. A mulher do Tio convencera o Pai, cunhado dela, a alugar uma casa na estrada, a pequena distância da deles, e lá se foram, as duas famílias, curtir o veraneio.
As mulheres, os agregados e a criançada passariam todo o mês na Ilha, mas o Pai e o Tio tinham que ir e vir todo dia para a cidade. Ao fim da jornada, ficando a Ilha a não mais que uma hora de carro, os dois voltavam para junto dos seus. Vinham na camionete Plymouth, carregados de compras. Guardavam a Plymouth na garagem de um amigo e iam para a margem do rio. Para atravessá-lo, o Tio soltava um foguetão cujo estouro era o sinal de chamada para o barqueiro. Na Ilha, onde haviam deixado suas bicicletas, nelas montavam, carregados de bagagens, dispondo-se a enfrentar meia hora de pedaladas para chegar às casas. Vinham às gargalhadas, contando casos do seu dia-a-dia, antevendo a festa que lhes fariam os familiares.
Esses pequenos atos de heroísmo e devoção às famílias representam bem a fibra de que eram feitos aqueles homens.
Não se podia dizer do Tio que fosse simpático. Não era. Seu humor era muito instável, não sendo dado ao riso fácil. Essa variação do humor causava um certo desconforto, pois, do mesmo modo que poderia ser afável, no instante seguinte já fechava a cara. Era, contudo, generoso e solidário. Apaixonado pela mulher, acolheu com bondade duas irmãs solteironas e carolas, mas também deu abrigo a Laura, moça de família muito pobre. Recepcionada na família, Laura passou a ser apresentada como prima, mesmo sem nenhum parentesco. Graças a ela, os filhos do Tio passaram a tomar banho na praia calçados com Congas, marca de um sapato tênis de lona branca. Tudo porque a pobre da Laura foi ferrada de arraia ao entrar na água com a maré seca. Foi quanto bastou para que todo o povo do Tio, ele mesmo inclusive, só entrassem na água calçados e arrastando os pés. Os pescadores ensinaram que, se esbarrassem na arraia que se quedava submersa e invisível, o peixe se assustaria e fugiria sem ferrar o banhista.
Os três filhos do pai nunca se deixaram atingir pela arraiofobia dos primos, e deles caçoavam abertamente. Por sorte, ninguém mais se acidentou naquelas primeiras férias, nem nas que se sucederiam. E até a prole do Tio, nos outros verões, acabou abolindo a prática singular de tomar banho de mar calçados.
Para os assombrados olhos dos primos pobres, a camionete Plymouth era símbolo da opulência dos primos ricos. No futuro, o carro da família viraria lugar comum, mas naqueles tempos o contexto era outro. Ao fim das férias, o Tio e os seus, trancada a rica casa de praia, voltariam para casa naquele artigo de luxo, naquela máquina prodigiosa dirigida por um homem poderoso. O Pai, sua mulher, filhos e agregados, inclusive os que moravam com o Tio, embarcariam no caminhão que o correligionário do Pai – um dos poucos que se manteriam fiéis a ele – havia colocado ao seu dispor. Fim de férias em que o coração dos meninos vinha apertado de saudade, misturada com o sonho de um dia eles próprios terem um automóvel que lhes dispensasse o dissabor, para eles quase vexame, de voltar para casa sacolejando na carroceria de um pau de arara. Sentimento amargo e mesquinho de petizes tolos incapazes de entender que aquilo era tudo que o bolso do Pai podia alcançar para que os seus pudessem gozar férias maravilhosas na Ilha da Fantasia. A imaturidade não lhes deixava entender que um sonho, quando não cabe no bolso, vira pesadelo.
Rui Guilherme
Juiz de Direito e Escritor.