Dona Marta era feia, mas era linda. Cabocla paraense de Breves, quase negra, denunciava de cara sua origem afro-ameríndia. Miúda, magrinha, de uma bondade enorme, fazia-se ouvida e respeitada sem jamais demonstrar aborrecimento, perda de paciência. Foi casada com um pernambucano das brenhas, seu Manoel, alcoólatra, presepeiro, muito exibido. Falava um dialeto pernambuquês nem sempre fácil de entender. Certa vez, pergunta à Mamãe:- “Ó dona Vivi, cê tem mézim?”. – “Mézim? Que é isso, seu Manoel?” – “Mézim? Ó xente! Pa púiga!!!”
Tradução indispensável:- “Dona, Vivi, você tem mèzinha? Ó gente! Para purgar!!!”. Resumo: o velho bebum queria um purgante caseiro, uma mèzinha.
Seu Manoel foi prestar serviço na casa de estrangeiros que falavam inglês entre si. E seu Manoel, todo prosa, veio pavonear-se de seu recém-adquirido conhecimento no idioma de Shakespeare, dizendo que quando os gringos queriam tomar ovos quentes, pediam que lhes servissem “blóvos clentes”.
O velho casarão da Cidade Velha em Belém do Pará era imenso. De esquina com uma praça, `à frente quatro portas enormes e um portão principal de folha dupla, com onze portas gigantescas pela lateral. No térreo, porão habitável com pé direito de oito metros; uma escadaria com vinte e oito degraus dava acesso ao segundo piso, onde residia a família, dotado de onze quartos, salas, salão de baile, despensa, cozinha medieval e banheiro idem. Do salão de baile, outra longa escadaria levava ao último piso, chegando-se a uma antecâmara e, com mais seis degraus acima, à água furtada – que chamávamos sótão – com porta e três janelas que permitiam espetacular vista em 360 graus para o rio Guamá, para a praça Frei Caetano Brandão, para Catedral Metopolitana e para os quatro pontos cardeais. Era um Downton Abbey ao tucupi. Para a manutenção do palacete era necessário um esquadrão com mais empregados que membros da família.
Nossa cozinheira, dona Ernestina, tinha ódio do rival político de Papai. Quando esse adversário estava tendo seu discurso transmitido pela única estação do Pará, a PRC-5, “a voz que fala e canta para a planície”, dona Ernestina foi contida a tempo quando, vassoura em punho, armava o bote para fazer em pedaços o rádio Phillips holandês pelo qual nos conectávamos com notícias de todo o mundo.
Meus irmãos eram gentis, comportados, amáveis e amados por toda a família, da qual os empregados eram considerados parte integrante. Eu – eu era o cão chupando manga! Meu irmão, primogênito mais velho quatro anos, era o “bicho-homem” queridinho da Mamãe. Minha irmã, única filha e caçula, natural que fosse o quindim do Papai. No meio, sobrava eu, que fazia minha catarse inventando as maiores e até perigosas estripulias.
Meus pais queriam sair à noite. Mamãe pediu à dona Marta para ficar cuidando dos três filhos.
– “Dona Vivi, me perdoe. Eu posso ficar tomando conta da menina e do mais velho quantas vezes a senhora me mandar. Mas o do meio… Ele é muito arteiro e não vai me obedecer. Cuidar dele, dona Vivi, pra mim… não vai dar.”
– “Está bem, dona Marta.” – E foi dar a notícia a Papai de que sua noitada fora abortada.
Pouco depois dona Marta volta a falar com Mamãe:
-“Dona Vivi, me perdoe. Fui olhar as crianças dormindo. São três anjinhos, todos três, tão puros, tão inocentes… A senhora pode sair com o doutor que eu quero, sim, ficar com as crianças.”
Depois de enviuvar, dona Marta ficou conosco quase até o fim de sua santa vida. Morreu internada com tuberculose no hospital de isolamento, mas o tempo todo antes de sua partida vinha ocasionalmente nos visitar. Nunca esqueci sua imagem frágil, a vozinha fraca e meiga. Para mim, dona Marta é a imagem do amor santo.
Milhares estão sendo chamados pelo Senhor nos atuais tempos de Covid 19. O pranto das famílias enlutadas corta o coração de qualquer pessoa com um mínimo de sensibilidade. Só anormais conseguem manter-se indiferentes às mortes recentes, impassíveis diante de números que não param de crescer. Paulo Madeira, um grande amigo e excelente colega, contaminado pelo coronavírus, passou um tempão interno na UTI, entubado. Esteve entre a vida e a morte, mas, graças a Deus, pulou a fogueira. Deixou registrado que chegou a dar um alô para a Dama da Foice, a qual, para minha alegria, acabou virando as costas para meu amigo. Indiferente, foi ceifar em outras messes, deixando-me com aquele alívio que não deixa de ser encharcado de egoísmo.
O Pai Eterno, antes de começar a pandemia, veio a abrigar no pavilhão dos santos a nossa baiana Dulce dos Pobres. Que Ele receba em Sua morada as vítimas do corona vírus do mundo inteiro. E, Senhor, se me permites uma sugestão, aí vai: escala dona Marta para fazer companhia à novel santa brasileira. As duas, com certeza, irão se dar muito bem uma com a outra e serão de grande utilidade como recepcionistas à multidão de recém-chegados que não para de crescer.
Rui Guilherme
Juiz de direito e escritor