Apraz-me porque a coisa mais calorosa que tenho é ver nossos filhos encaminhados na vida e independentes, ainda mais trabalhando todos na mesma profissão e juntos. Alívio pelo resultado, a despeito de eu não ter contribuído para isso como hão de imaginar e é sobre isso que eu gostaria de falar. A nossa converda acaba se tornando a aceitação de um MEA CULPA e uma confidência.
Não te espantes sobre o que irei te dizer, então: não fui um bom pai durante muito tempo no sentido de estar presente fisicamente em suas vidas e se há algo a lamentar, por certo, seria isso. Explico: sendo egresso de uma família “remediada”, casamos cedo, logo senti a necessidade de trabalhar duro para sustentar os dois primeiros filhos. Bernadete e eu nos conhecemos nas enfermarias da Santa Casa de Misericórdia do Pará. Despertava-me muito cedo para trabalhar. Nunca soube o que é levar filhos na escola. Nunca almoçávamos juntos, exceto aos domingos.
Quando eu saia para trabalhar, eles estavam dormindo e ao voltar para casa às 10 da noite, eles já estavam dormindo e nos fins de semana e feriados, quando estavam acordados brincando ou querendo brincar comigo, EU era quem dormia; um desencontro total.
Ignorante, acreditava que meu papel era de apenas de provedor. Na minha cabeça, eu era um trabalhador “braçal” 24 horas por dia e pai quando desse.
E, quando dava e eu buscava ser o melhor como pai, mas isso ocorria nesses raros fins de semana. Íamos todos para o interior se hospedar em alguma pousada simples às margens de um rio ou lago. Lá aprenderam a nadar comigo. Poucos dias antes de pegarmos a estrada, as crianças entravam no “clima de férias”. Eu me responsabilizava pelo bem estar de todos, cuidando do carro aos mantimentos para o fim de semana prolongado.
Absorto na necessidade do trabalho, sem perceber, com o passar dos anos, eu passei a fazer dele o meu lazer. Amava o que fazia pois além do aspecto econômico rentável, havia a sensação de realização pessoal como ser humano.
A minha esposa, Bernadete, justiça seja feita, segurou a onda muitas vezes, por exemplo, quando eu ocupado ou assoberbado de preocupações, me esquecia da data de seus aniversários, chegava atrasado para os parabéns ou não podia comparecer às celebrações importantes nas escolas. “Mamãe, cadê o papai? Por que ele não vem?” “Meu filho, o teu pai está trabalhando. Ele não nos esqueceu, não, tá?”, dizia com afeto. Assim, nossos filhos sempre associaram o trabalho como algo bom.
Assim, naquela rotina os anos foram passando e um belo dia, minha esposa me chamou a parte e disse: nossos filhos querem ser médicos. Pensei: “nossa!” Fui tomado de surpresa, mas também, por muito emoção e lágrimas rolaram de meus olhos. Há algum tempo eu já me questionava sobre se minha vida se resumiria a apenas trabalho, pois tinha enorme dificuldade em conciliar trabalho e um tempo para mim mesmo é família.
Ao viajarmos em férias, pedi aos três que gostaria de conversar sobre a decisão que eles haviam tomado. Eu gostaria de me certificar se era isso mesmo, pois ser médico, além de ser um projeto pessoal, também é um projeto da família. A bem da verdade quem não gostaria de ter um filho-a médico assistindo toda família, familiares e amigos proximos para orgulho dos pais, avós, tios-as? Eu estava a caminho de sentir isso e para isso precisava me preparar, visto que a formação de um médico demanda muito tempo e esforço de toda a família, agora imagine formar três médicos. Nunca duvidei disso: pensei vou ter que continuar trabalhando e agora muito mais; o “sacrifício” seria recompensado quando os visse médicos.
Assim que depois de um belo jantar, sentamos nos quatro, já que minha esposa foi para quarto com nossas duas filhas ainda pequenas.
“Antes de saber da decisão de vocês”, meio sem jeito e autoritário, perguntei: “qual é a opinião que vocês têm de mim como pai?” Fez-se um silêncio de surpresa, entreolharam-se e após permitirem-se a vez, falou o mais velho, mais ou mesmo assim (a voz era grave e com falsetes de um jovem): “O senhor não foi um bom pai”. Apesar de chocado, não fiquei surpreso. “Como assim?”, perguntei. “O senhor era ou é muito autoritário; cobra muito e dá muitas ordens”, disse. Tentei contraargumentar, dizendo que eles eram “muito danados”. Desisti. Era melhor deixar que falassem. “O que mais?”, indaguei. O segundo disse: “o senhor não conversa com a gente como a mamãe faz”. Engoli seco. Emudeci. Era a mais pura verdade. A minha esposa deitava com eles, brincava, os ensinava nos deveres da escola, passeava… Fez-se um longo silêncio e eu, envergonhado e me sentindo culpado, mal podia encará-los.
Aí o terceiro falou: “mas olha, o senhor tem o lado positivo. Na escola, quando sabem que o senhor é nosso pai, diretor, professores, todos são seus pacientes e falam bem do senhor e nos tratam bem. Muitos têm filhos que se tratam com a mamãe (pediatra), acaba sendo a família toda. Então, a gente acha que ser médico é bom”.
“A melhor lembrança que temos do senhor”, disseram com saudosismo, “é dos nossos passeios nos interiores. Lá o senhor era “outra pessoa”, alegre presente, mais paciente”. Depois de tanto puxão de orelha, respirei aliviado. No fundo sempre quis ser assim e por imaturidade, “falhei”.
O vestibular para cada um deles foi acontecendo e as conquistas foram se sucedendo. Depois de graduados as residências médicas, cuja formação pode ser quase uma outra graduação médica.
A cada três meses fazíamos um périplo pelo Brasil, visitando os filhos em três capitais diferentes, pois não existia medicina no nosso estado para sentir suas necessidades e “fazer correções no rumo”.
Aos amigos e conhecidos, digo-lhes que a família deveria ser tratada como uma empresa séria, no caso desta, o lucro é a realização pessoal, o bem estar e a felicidade de toda a família. Não se monta uma empresa para não dar certo nem como se fosse um carrinho de cachorro quente, disse. Infelizmente, por uma série de razões, muitas famílias acabam assim.
Uma vez enfrentados na atividade médica fomos atrás de uma faculdade paralela para educá-los naquilo que deveria ser ensinado como primordial nas faculdades de medicina: tratar do ser humano e não apenas do doente. Era necessário que abrissem as suas consciências para o homem que sofre de corpo e alma. Então, com a concordância de todos fizeram oficinas de fonoaudiologia, coaching e sobretudo PNL, cuja serventia foi despertar neles a consciência crítica e o amor à profissão.
Amigos, familiares e conhecidos, todos dizem que nossos filhos são “diferentes”.
Os três médicos influenciaram diretamente na escolha da profissão médica das nossas duas filhas que hoje, no café da manhã, discutem os casos clínicos com os irmãos médicos. À distância, eu os observo embevecido.
Agora me sinto como se fosse um agricultor realizado, sentado na varanda de sua propriedade, no crepúsculo da tarde, tomando o seu café, observando a sua plantação verdejante em tempos de colheita.